Por Emanuel Aragão
Do que trata a linguagem de Beckett? Do que ela diz? A que se refere? Essas perguntas não tratam simplesmente do conteúdo da escrita do autor, mas daquilo que ele produz no espaço como criação artística. Beckett não escreve, ele produz blocos concretos nos quais se encontra condensado aquilo que chamaríamos de vida. O que são esses blocos? O que chamaríamos de vida? Wittgenstein escreve em seu Tractatus, a última frase: “daquilo que não se pode falar, é melhor calar”. É disso que Beckett fala, insistentemente, compulsivamente. O seu esforço incansável, melancolicamente absurdo e perfeitamente coerente, é falar do que não pode ser dito, sempre. A sua tarefa constante consiste em desfazer a linguagem daquilo que não lhe serve para tocar o mais profundo de si mesma. Consiste em desnudar a linguagem de tudo aquilo o que lhe sobra, de tudo aquilo o que não é necessário para a sua própria existência, e isso acontece em paralelo a uma recusa quase completa de essencialismos e a prioris. Talvez seja disso que se trate Beckett: falar da essência sem poder falar dela, sem acreditar nela. Talvez. Montar Beckett depois que ele mesmo tentou fazê-lo, consiste em ter, no mínimo, consciência dessa problemática e, ao mesmo tempo, um certo desrespeito por ela. Desrespeito absolutamente necessário. Provavelmente o núcleo dessa problemática seja exatamente a noção de nuclearidade. Daquilo, precisamente, que não pode faltar, que não pode não ser. E mais importante que isso: aquilo que não pode sobrar, exceder. Se existe algo que não pode não ser, é uma dúvida. Porém, em Beckett, parece ser bem claro que existem coisas que podem e devem não ser, que excedem. Essas devem ficar de fora, delas devemos passar longe se queremos falar de Beckett e com ele. Montar Beckett consiste em eliminar o que excede. E como saber? Como escolher o que é e o que não é? Ou, no mínimo, o que está e o que não está? E não nos esqueçamos que se trata de escolhas, destituídas de um sentido que as transcenda. Como escolher o que é essencial na vida e o que é resto? Faz qualquer sentido sequer dizer isso? Como autorar a vida dessa maneira? Não a vida que cabe a cada um de nós, mas a vida como vida, como coisa, como uma presença que existiria para além de uma individualidade. Como? Como se aproximar tanto dela? Ou como se distanciar a ponto de poder falar dela?
O caso é que se monta Beckett. Posto tudo isso, por que não montar, como não montar? E é a partir dessa última montagem, Resta pouco a dizer, que tudo o que foi dito até agora, foi dito. E é sobre ela que resta ainda a dizer. Sobre o que está presente naquele palco e principalmente sobre o que não está. É dessa problemática que ela parece constantemente tratar: o que está e o que não está. Digo isso porque há um gigantesco detalhe que parece indicar isso: o filtro negro translúcido que separa a cena da platéia, filtro este que serve de suporte para serem projetadas as rubricas do próprio Beckett. Através dele a cena chega ao olhar do espectador. Através dele o olhar alcança a cena. Todavia, ele não permite que tudo atravesse. Ele parece funcionar como um filtro de excessos. A rubrica, a data na qual o texto foi escrito, o local onde ele foi escrito. Tudo o que nos informa o onde e o como o texto passou a existir. Isso não atravessa o filtro. Isso tudo parece estabelecer o setting onde essa construção tão precisa e delicada está por acontecer. Um setting que é necessariamente artificial. É o lugar onde só o que tem de estar pode estar, o resto fica de fora. E é o próprio Beckett quem nos diz o que pode estar, o que ali cabe: duas cadeiras, mesa, dois homens. A partir daí, nada mais. E em cena, o desafio é não extrapolar esse limite tão sutil e imperativo. E tudo o que vive dentro da cena, vive sob essa condição, sob essa espécie de responsabilidade de ter atravessado o filtro. Cada produção que se dá no espaço cênico vive com uma espécie de lupa deitada sobre si que lembra que aquela produção tem de ser necessária, que a contingência não pode sequer se aproximar dela. Mesmo sendo essa produção uma simples escolha. Ali, atravessado o filtro, dentro desse setting artificial, só se pode falar do que é fundamental à vida. Ainda que a linguagem pareça não alcançar essas partículas tão ínfimas. É como quando projetamos um feixe de luz sobre um espelho e a luz é refletida em nossa face. Mas não toda a luz. Existem partículas diminutas que atravessam o espelho, atravessam e adquirem uma velocidade ainda maior do que aquela que tinham antes. Porém, não as vemos. Mas elas estão lá. É só dessas partículas diminutas que pode ser composta a cena de Resta pouco a dizer. E isso, por vezes, realmente parece acontecer. Mas é um equilíbrio delicado, profundamente delicado. Um simples tombar de cabeça que exceda esse equilíbrio pode implodir o setting.
Nada pode sobrar. O que atravessa o filtro, e participa dessa relação entre espectador e construção cênica, é aquilo que seria uma parte fundamental dessa espécie de condensação artificial daquilo que chamaríamos vida. O resto fica preso, engastalhado no rigor desses poros. Dos poros desse espelho. Nada pode sobrar. “Daquilo que não se pode falar, é melhor calar”. Beckett insiste em falar desse “daquilo”. Só o que pode existir na cena de Beckett é esse “daquilo”, nada mais. É só isso que pode atravessar o filtro. É só isso que pode participar dessa relação entre palco e platéia, relação essa que deve partir de uma condensação resfriada da própria vida. Só isso parece poder estar contido na cena de Beckett, vivenciada através desse espelho poroso: uma condensação morta da própria vida. O que excede a isso – é melhor calar. Resta pouco a dizer, resta muito pouco. Ou, resta tudo a dizer sobre o que não pode ser dito.
Texto publicado na Revista Questão de Crítica, 15 de março de 2008.