Por Marília Panitz
O ato regulado pela luz… No escuro não há vida ou… O que os olhos não vêem…
O sonho produz luz na escuridão do sono.
As estrelas são perfurações no manto da escuridão.
Chiaroscuro: na relação entre o foco de luz e a sua ausência se estabelece a subversão da reprodução naturalista. É ali, nessa passagem do ver para o supor o que não se vê, que habita a expressão do que é representado (sempre além da forma).
Fecha os olhos!
Ver é ler?
Em um diálogo com a obra de Samuel Beckett que já se estende por nove anos, a pesquisa de Adriano e Fernando Guimarães movimenta-se entre linguagens e resiste a uma classificação.
Desescuridão provoca o espaço da torre. Recobre as suas muitas janelas com a escrita cursiva sobre o quadro-negro – esse estranho nome que se atribui ao verde em que o giz dá o tom do aprendizado – no qual se transformam todas as paredes. Ali estão transcritas as diversas formas com que o pensamento humano buscou lidar com a ideia da ausência da luz (um não ver, por princípio).
A lâmpada que deve iluminar as inscrições desce do teto onde deveria estar e se aproxima do chão. Assim, o que resta ao olhador é a penumbra de uma sala onde a iluminação se resume à reflexão da luz no piso de madeira. Adivinhar (ou quase) a leitura. Decifrar os conceitos (de todo modo, insuficientes). Desafiar o olho a enxergar além de suas limitações… E ouvir a sinfonia (ou palimpsesto) de sons que repetem a palavra escrita, a perora das vozes que se transformam em exercício hipnótico de confundir significados.
Desescuridão segue o itinerário (um método?) já percorrido pelos dois artistas, em outros trabalhos. Algo que se poderia, talvez, classificar como um desgarrar-se da estrutura originalmente cênica e deslocar-se para um outro lugar: o de provocação dos sentidos na ausência das narrativas nas quais se apoiavam originalmente.
Esse foi o caminho de Luz Obscura – O Metrônomo de Beckett, de 2001, instalação apresentada na “Bienal - 50 anos”, dentro da mostra “Redes de Tensão”. Criada dentro do projeto Felizes para Sempre, que articulava a montagem de Dias Felizes, Ir e Vir e Play (peças de Beckett) com performances e instalação, ela se compunha de duas salas – a branca e a negra – que abrigavam a repetição de uma mesma imagem fotográfica (no claro) e os flashs de luz (no escuro) que seguiam (perseguiam) o pulsar de uma sinfonia de metrônomos. Discutindo duas questões centrais na obra do dramaturgo – a compulsão exaustiva à repetição e a iluminação como condição de fala e produção de sentido, ambas ligadas à ideia das regulações externas sofridas pelo humano –, ela parecia requisitar do observador um esforço interpretativo no qual seu próprio corpo estava implicado (pensar com o corpo).
Esse esforço físico (até a exaustão) parece ser a metáfora que orientou as performances Respiração + e Respiração – apresentadas no “28º Panorama MAM da Arte Brasileira 2003 (Desarrumado)”. Concebido como parte do projeto “Não ficamos muito tempo… juntos”, o jogo de resistência de Respiração +, performado por dois atores que mergulhavam em banheiras, sob o comando de um terceiro, era originalmente a forma com que o texto beckettiano se revelava, lembranças sob diferentes pontos de vista. Se o que regulava a respiração (ou a cassação do ar) era inicialmente o toque do cronômetro, no decorrer da performance, o corpo do ator passava a ordenar a emersão. A resistência física regulava o próprio texto. Em Respiração –, o ator se encarcerava em um cubo de acrílico transparente, até que sua própria respiração o fizesse desaparecer na bruma que se formava no interior da caixa. Ao serem transportadas para a galeria, sem a companhia das peças curtas com que dividiam espaço – Ato sem Palavras II, Catástrofe, Respiração, O quê, onde e Jogo – e sem os textos originais, elas passavam a “falar” de suas próprias definições: aquele que não pode sorver o ar para dentro de seus pulmões, explica a operação vital que lhe é negada.
Desescuridão é deslocamento de um detalhe no projeto Todos os que caem. Surge originalmente na parede de Rascunho para Teatro (outro texto de Beckett), onde se encontra a janela em cujo parapeito a personagem central passa a peça inteira. Sempre de costas para a platéia, ela não emite uma única palavra e deixa, pairando no ar, a dúvida:
irá saltar ou não? As inscrições que recobrem essa “moldura, quadro/negro” são alteradas pelas duas figuras (anjos?) que “levantam a ficha” da personagem (sua vida que, afinal, não conta quase nada). Palavras apagadas e reescritas, grifadas, sublinhadas, parecem exibir ao espectador alguma pista do que pode ter importância naquele relato da mais absoluta banalidade. Puro engano. Esses são gestos formais, que mostram como se poderia destacar alguma coisa da história, se houvesse algo a ser destacado. Mas não há!
Na instalação, de certa forma, todos ocupamos o lugar dos dois “anjos pesquisadores”. Estamos ali para destacar, grifar aquilo que quase não podemos ler (e se lemos, faz algum sentido?). Utilizando o ícone do processo de educação do homem (o quadro onde se escreve/apaga o que deve ser guardado na memória), os artistas seqüestram a sua funcionalidade e transformam-o em pura forma evocativa do aprendizado. Mas não nos dão nem ao menos a escuridão, onde poderíamos supor, fantasiar os significados.
(Mal) iluminada, a sala é meditação em torno do vazio. Luz-sem-luz.
2005