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Por Helena Katz

 

Para conhecer, precisamos de doses de familiaridade e estranheza. Não há local onde essa combinação se faça tão presente quanto o nosso corpo. Não “no nosso corpo”, mas “o nosso corpo”. Sem separação entre sujeito que habita e um lugar habitado. Somos nossos corpos, não somos em nossos corpos. E não houve um século onde, como nesse que acabou, as artes tenham-se dedicado a desmanchar as habituais barreiras entre o público e o privado, elegendo o corpo como o lugar ideal para essas discussões.

O entendimento de corpo talvez seja um emblema da forma como as sociedades percebem a si mesmas. Berkeley (1685-1753), no início do século XVIII, dizia-nos que o corpo existe apenas na nossa percepção. E explicava que indivíduos diferentes percebem o mundo de maneira similar porque existe uma ordem confiável, universal, criada pela mente de Deus, que transcende as mentes individuais. Negava que, coisas independentes, percebidas por nossas sensações, de fato existissem. As coisas do mundo simplesmente não desapareciam porque a vigilância permanente de Deus eliminava a intermitência dos corpos, garantindo a sua continuidade entre os momentos em que os percebo, não os percebo e volto a percebê-los.

Descartes duvidou da existência do corpo. Como a crença de que temos um corpo provém dos sentidos, e nossas inferências via sentidos muitas vezes se equivocam, seria logicamente possível que elas se equivocassem sempre e que, então, o corpo fosse algo que apenas parecesse a nós existir.

Corpo, do latim corpus, corporis. Body, do anglo-saxão bodigm, do alemão antigo botah (anterior ao século XII) e do alemão atual Bottich (barril, tanque, lugar de fermentar bebidas). Corpo como lugar. “Meu corpo é a minha casa”, dizia Lygia Clark. A separação conceitual entre body e corpo instaura sentidos que contaminam aquilo a que ambas se referem. Palavra que eu uso me inclui nela (Manoel de Barros, 1993).

No Book of Common Prayer (1549), livro de orações da Igreja Anglicana, body vale como pessoa. “Com essa aliança eu te desposo... com meu corpo, eu te venero”. E corpo identifica o corpo morto (corpse, em latim; Körper, em alemão). Quando Vesalius (1514-1564) passou a retalhar cadáveres, desenvolvendo extraordinariamente a anatomia, a palavra que circulava nas universidades europeias era corpus.

Do século XVII em diante, corpus passa a contaminar body. Não mais referência ao todo, passa a identificar apenas o pedaço, aquilo que recebe a alma durante o parto e que é deixado para trás depois que ela se vai, na morte. Os alquimistas, aliás, chamaram ao corpo de recipiente, talvez para sublinhar que a transformação de comida em sabedoria apontava para a transmutação de todos os elementos, inclusive a do metal comum em ouro.

Dois naturalistas franceses travavam um debate, hoje considerado datado, em torno da ideia de organismo. Georges Cuvier (1769-1832), o diretor da primeira Grande Enciclopédia Zoológica, e Etiénne Geoffroy Saint-Hilaire (1770-1822), o sucessor de Lamarck na Academia de Ciências de Paris, que esteve no Brasil entre 1816 e 1822, discordaram a respeito do entendimento de corpo. Para Cuvier, as correlações que resultam na unidade do organismo são tão precisas que não há modificação capaz de inviabilizá-las. Para Saint-Hilaire, a unidade resulta, obrigatoriamente, das tendências internas de transformação. Pouco depois, quando Claude Bernard (1813-1878) isolou setores do corpo sem afetar a sua unidade, evidenciou que as relações internas constituíam uma realidade material à qual se vinculava a unidade do corpo.

Na arte do século XX, essa unidade material do corpo permitiu que o trânsito entre body e corpus se tornasse central. O corpo como uma ligação explícita entre biologia e cultura. A compreensão de corpo nesse viés faz-nos entender como temos tanto a ver uns com os outros. Pelo corpo se chega no corpo do outro, esse outro que nos devolve o olhar e, nesse gesto, atesta a nossa existência. Comunicador de identidades, o corpo expõe-se também como crise de papéis aparentemente assentados. Quando se recusa a ser tomado como sujeito ou como objeto, obriga-nos a repensar a reconstrução dos dois.

Felizes para sempre, de Adriano e Fernando Guimarães, engrossa o caldo dessa larva que jorra das artes de fronteiras móveis. Sua questão central parece ser a de propor um corpo para uma dramaturgia. É preciso construir um corpo novo para esse teatro porque ele se desfolha em cenas de outras formas. Performance, instalação, exposição, teatro, artes visuais – identificações que se tornam ralas quando sequer a distinção entre objetos e organismo desapareceu. Daí a necessidade de atravessar ambientes, congelar o tempo do antes na fotografia, mudar a posição de quem faz e de quem assiste.

Não apenas os objetos são transformados em corpos, porque refuncionalizados, mas também os corpos passam a valer como objetos, porque refuncionalizados. Corpos-armários e armários-corpos, numa ordem apenas retórica. A memória guia os trânsitos porque recria os seus participantes.

Este Beckett dos Irmãos Guimarães parece escoar o Deleuze de The Body, the Meat and the Spirit: Becoming Animal (1981): “O corpo é a Figura, ou melhor, o material da Figura. Acima de tudo, o material da Figura não deve ser confundido com a sua estrutura material no espaço, que é separada disso. O corpo é Figura, não a estrutura. Ao contrário, a figura sendo um corpo, não é um rosto e nem mesmo tem um rosto. Tem uma cabeça, porque a cabeça é uma parte integral do corpo. Ela pode ser mesmo reduzida à cabeça”.

Ser reduzida a uma cabeça, nesse caso, é ser reduzida à sua materialidade de corpo. Não o corpo que ocupa o espaço, mas o corpo que, sendo material da sua Figura, dá visibilidade ao que a palavra esconde.

Um teatro que é metacorpo de suas propostas. Um teatro de um novo objeto de um corpo que se espalha em objetos, que se tornam corpo. Num Ir e vir que se tornam Jogo e prometem Dias Felizes para as artes sem corpo pronto.

 

Texto publicado no catálogo: GUIMARÃES, Adriano; GUIMARÃES, Fernando (org.). Felizes Para Sempre. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001. 

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