Por Adrienne Samos
Que ironia que Samuel Beckett, o grande desfazedor, consciente como ninguém do buraco no centro de todo ato humano, fosse também o dramaturgo mais obsessivamente resistente à menor mudança nas montagens de suas peças. Dupla ironia: os Irmãos Guimarães dedicaram-se a desarranjar por completo, não as obras, mas as metáforas essenciais do autor irlandês, enxertando-as no campo da plástica para dissecá-las, reinventá-las e carregá-las de novas densidades.
O universo estético desses artistas brasileiros habita em caixas. Minimalistas, translúcidas, assépticas como vitrines médicas, iluminadas das mais variadas formas. As caixas exibem textos ou objetos estranhos e sedutores que às vezes as transbordam; outras contêm performers – de corpo inteiro ou “fracionados” – e inclusive o próprio espectador.
Seu radical desarranjo do texto beckettiano é visto claramente nas performances Respiração + e Respiração –, que se afastam substancialmente de sua fonte original, Breath (1969), a peça teatral mais curta de da história, que dura apenas 35 segundos, sem atores nem palavras. Ambas as performances estão centradas no próprio ato de respirar para expor a banalidade do poder e vã impotência que obriga tanto o fraco como o forte a repetir ações estéreis, risíveis e esvaziadas de sentido, que ainda por cima acabam no inevitável fracasso. O uso irreflexivo da linguagem, a dramática iluminação, a parca beleza das cenas, o ritmo severo e a tortura branda a que se submetem os performers nos aproximam das fronteiras do horror.
Texto publicado na revista: Art & Co. nº1. Madri: Arco, 2008.