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Por Marília Panitz

 

Problema:

 

Se é verdade, como foi dito pelo bispo irlandês Berkeley

que ser é ser percebido (esse est percepi),

seria possível escapar á percepção?

Como tornar-se imperceptível?

Gilles Deleuze[1]

 

Sssssssssshhhh! Esta é rigorosamente toda a  fala na única produção de Samuel Beckett para o cinema: seu FILM, de 1964, que tem tão somente o nome da sua função. Parte exemplar do itinerário do autor, em direção a um constante descarnamento da linguagem até o silêncio... ou até a redução àquilo que Wittgenstein afirmava ser a essência da maior parte das experiências de embate com as coisas do mundo, sua redução à interjeição, sua redução ao “Olha!”. Beckett cogitou chamar o seu filme de “O Olho”... De fato, a questão que permeia os cerca de vinte minutos de projeção concentra-se na relação (de caráter estritamente escópico) entre o (não) olhar de um Buster Keaton ancião e o olho onipresente da câmera (seu duplo) ... As personagens definidas no roteiro são nomeadas E (de eye, olho em inglês) e O (de object, objeto, esta performada por Keaton que afirmava não saber o que estava representando – o que fez magnificamente). E o que O faz todo o tempo da filmagem é tentar evitar ser visto (por qualquer ser que tenha olhos), enquanto é seguido por E... até o inevitável encontro especular.

Esta é uma bela parábola sobre o estatuto do olhar no século que traz, a partir de Freud, a substituição do sujeito cartesiano, do “penso, logo existo”, pelo sujeito descentrado, não correspondente á consciência, sujeito á inquietante estranheza de ser abordado por sua própria imagem como fantasma, idêntica a si e ao mesmo tempo irreconhecível, pura alteridade. Seguindo essa lógica e a  colocando em paralelo aos estudos linguisticos, Jacques Lacan nos oferece a possibilidade de ver E como sucedâneo do Olhar (daquele olhar desintegrador das coisas sobre o sujeito). E O corresponde ao olhar do humano, aquele que necessita ter onde re-pousar – e isso só é possível pela ação da linguagem – para não sucumbir ao Olhar. É por essa via que ele nos propõe uma divisão nos movimentos artísticos entre duas formas básicas de abrigar o olhar do homem. Aquele que acalma, porque organiza (caso da pintura neoclássica, por exemplo) e aquele que seqüestra, porque desvela o Real por vislumbres (como é o caso da pintura expressionista)[2]. Em um e outro O/objeto/qualquer-um-de-nós opera uma substituição e a arte se oferece como sentido circunstancial, vida... antes da morte.

O tem um tapa-olho, ou seja, visão monocular, aquela do mundo organizado e submetido à razão já proposto pela perspectiva. Assim , a lente da câmera – cujo nome é olho – vem desorganizar essa lógica ... à maneira das proposições das vanguardas históricas do início do século XX (e Beckett foi, sem dúvida, um de seus gestores)... O jogo de olhares que FILM propõe, apresenta algo que já começa a ser delineado na experiência cubista e construtivista. Por outro lado... a narrativa alude a uma fala dadaísta e mesmo surrealista... E a luz é sem dúvida tributária do expressionismo alemão... Isso em meio ao silêncio mais radical. E não é isso que Beckett nos propõe recorrentemente: ouvir o silêncio?

Aliás, essa tradição do silêncio, que leva o autor a sugerir em uma conversa sobre o pintor francês Pierre Tal-Coat, a idéia de que “não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar”[3] encontra eco nas composições de John Cage, que dizia em sua Conferência sobre o nada: “eu estou aqui e não tenho nada a dizer e estou dizendo e isto é poesia”[4].

Dentro de uma mesma lógica ded resistência, em 1929, ao debruçar-se sobre a mais complexa obra de James Joyce, Finnegans Wake, Beckett já apontava a essência visual (e figural) de certa (ou talvez , de toda escritura), seu estatuto compartilhado com a imagem:

 

Aqui forma é conteúdo, conteúdo é forma. Você reclama de que esta coisa não é escrita em inglês. Ela não é escrita de todo. Não é para ser lida – ou melhor, não é somente para ser lida. É para ser olhada e escutada. Sua escrita não é sobre alguma coisa, ela é a coisa em si.[5]

 

Sobre esse caráter do texto beckettiano – e texto aqui em seu sentido alargado, proposto pela lingüística pos-estruturalista – são elucidadoras as suas palavras sobre o processo de criação de suas obras:

 

Quando eu escrevo uma peça, eu me ponho dentro das personagens, eu sou também o autor fornecendo as palavras, e eu me ponho no lugar da audiência visualizando o que acontece no palco (...)

Eu preciso visualizar cada ação das personagens. Saber precisamente em que direção elas estão falando. Saber as pausas.[6]

 

Ou seja, lançar um olhar ao mesmo tempo panorâmico e fragmentário... produzir uma sintaxe correspondente á composição imagética... e à predominância do significante (como imagem acústica). Um exercício radical de apagamento de fronteiras, que permite que ele chegue a criar trabalhos em que a protagonista é a luz – proposta que se configura exemplarmente em suas últimas peças curtas e, em especial em Quad onde ela efetivamente orquestra toda ação de quatro quase-espectros mudos e sem rosto visível, sem identidade, um que é qualquer um.

Em 1990, a artista alemã Rebecca Horn produz seu filme O Quarto de Buster (Buster´s bedroom). Embora ela não faça alusão direta ao filme de Beckett e Buster Keaton praticamente só compareça eventualmente, como por exemplo, em uma imagem emoldurada[7], levada como talismã por Micha Morgan, o alter-ego da artista, a caminho de ser internada no Sanatório Nirvana House – onde Keaton também teria sido interno –, há uma série de paralelos possíveis que certamente aproximariam os três artistas. Os olhos fechados aqui, são da motorista Micha, dirigindo com uma venda azul sobre os olhos. Keaton, no contexto, tem também o estatuto de significante e provoca um deslocamento espaço-temporal significativo, já que ele é um dado histórico que se imiscui dentro da narrativa ficcional (como  fazia o  Sherlock Jr. Buster Keaton em um de seus filmes). Bruce W. Ferguson, em um artigo sobre o filme de Horn[8], nos fala da presença constante do “olhar espectral” de Buster Keaton, “um olhar reflexivo” que se oferece tanto à audiência quanto à personagem Micha, simultaneamente e que se reflete nos olhares dos habitantes da Nirvana House, vividos, entre outros, por David Warrilow (este, um grande ator beckettiano. Quem sabe estaria aí o tributo de Horn a Film?). Em uma cena em que aparece em um pequeno monitor de vídeo, Buster parece a Ferguson “um icônico e literal metrônomo que pára e começa novamente em espasmos rítmicos”. Sobre o monitor, encontra-se o objeto metrônomo que repete e reforça a leitura – imagem como ritmo.... Como a idéia de regulação externa de tempo em Beckett.... Como as máquinas instalações de Rebecca Horn... O que resta é estrutura poética... muda.

DUPLA EXPOSIÇÃO se inicia com uma ante-sala de palavras/imagens. A superposição das letras que formam trechos de três peças curtas de Beckett, encenadas no teatro, no âmbito do projeto Todos os que caem[9], des-organizam o espaço expositivo abordado já desde a entrada (que inclui a própria porta da galeria – em uma lição talvez aprendida e apropriada pelo avesso, da Étant Donnés, de Marcel Duchamp). Esse é um jogo de perspectiva que, de saída, já diz a que veio: desestabilizar a configuração mais concreta e estável para nosso imaginário – as paredes de tijolos de uma sólida construção, submetida claustrofobicamente ao espaço ‘sem corpo’, estritamente suporte, do cubo branco. A escritura encontra eco tanto na perora alucinada da boca sem corpo de Não eu quanto na parede-quadro-negro coberta de inscrições ilegíveis que serve de fundo e de base de consulta para a ação de A e B, ao tentarem decidir o destino de C: se ele se mata, jogando-se da janela, sobre a qual permanece imóvel ao longo da montagem, dirigida por Adriano e Fernando Guimarães, de Rascunho para Teatro II.

Já dentro da caixa de palavras[10], que antecede ao espaço central, dominado pela casa, duas imagens de uma performance em que  um homem se submete a ação crescente de um foco de luz até o desaparecimento... operando um paradoxo repetido de várias maneiras no projeto como um todo: o que apresenta a luz, ao mesmo tempo, como condição de visão e como instrumento de cegueira...

A casa de tijolos (que cita aquele muro percorrido por Buster Keaton em Film) não possui janelas visíveis no seu exterior. Ou melhor, possui somente as cicatrizes do que foram suas janelas; uma leve desarrumação na ordem dos tijolos em certos lugares que denuncia uma construção posterior. Mas existem portas... e três pequenos ‘visores para voyeurs’. Pelas portas, entra-se no espaço da escuridão (da ausência de luz e da solidão, como nos ensina uma performer que, entre as peças encenadas, lê com dificuldade, sob a precária luz de um fósforo, o verbete ESCURIDÃO, no dicionário). Entra-se no espaço da solidão, pois não é possível ver quem nos acompanha. É aí que surge a personagem/espectro-de-luz (sem corpo, pois é projeção) que se desloca pela casa fechando janelas virtuais que insistem em trazer luz para o ambiente... ela é certamente tributária do velho Keaton de FILM, mas sua ação já é outra... Ele não tem mais a ilusão de se proteger de seus duplos – que se multiplicam na ação compulsiva de fechar janelas. O que ele busca é não ter de se encontrar frente a frente com a luz (de fora) que o extinguirá certamente, dada a sua condição de projeção. Invertendo a metáfora, recorrente na história do cinema, do espectador que entra dentro do filme, deixando-se engolir pelo espaço ficcional... este fechador de janelas lembra a bailarina/coração-da-tela, vivida por  Lili Brik, em “Presa pelo filme”, de 1918, escrito e dirigido por Maiakosky. A personagem salta da tela para encontrar-se se com maiakovsky-pintor, em pleno experimentalismo construtivista, até que a nostalgia das situações e das personagens fictícias à faz retornar à irrealidade[11]. O poeta, dramaturgo e cineasta  já apontava essa ‘mágica” da projeção cinematográfica (em sala escura) de extinguir fronteiras entre o espaço da assistência e a projeção, sendo submetida ao corte da realidade: há que se ter a dupla atitude de deixar-se levar pela fantasia e, ao mesmo tempo, manter um olhar distanciado que sustenta a especificidade da existência do mundo ficcional, sustentada por mediação.

Ao ser invadido por luz intensa, que ‘mata’ a aparição por superposição (de luz sobre luz), o cômodo se revela naquilo que é: um quarto de espelhos, onde nos vemos repetidos (e capturados pela parede/tela)... A nos observar, os olhos do peixe e do passarinho que ameaçavam O em FILM, antes que ele descobrisse o perigo real no seu outro eu.

No terceiro estágio do percurso dentro da galeria, uma repetição em tamanho liliputiano: uma caixa de vidro com as mesmas proporções da casa, abriga as projeções de imagens congeladas daquele Buster Keaton revisitado, nosso fechador de janelas... O caminho nesse itinerário de fora para dentro e para fora da galeria novamente é orientado pelo texto de Beckett, inscrito em uma única linha que percorre todas as suas paredes:

 

Fica de pé olhando para a parede vazia. Outrora coberta de quadros. Retratos de… ele quase que disse entes queridos. Sem quadros. Sem vidraças. Presos na parede com percevejos. De todo tamanho e feitio. Caíram um atrás do outro. Foram-se. Todos rasgados e espalhados. Espalhados por todo o chão. Não todos de uma vez só. Não foi nenhum acesso de… nenhuma palavra. Arrancados da parede e rasgados em pedacinhos um a um. Ao longo dos anos. Anos de noites. Nada na parede agora senão os percevejos. Nem todos. Alguns caíram com os golpes. Alguns ainda prendendo uma nesguinha. Então fica ali em pé olhando para a parede vazia. Outrora sabia os nomes de cada um. Ali ficava o pai. Naquele vazio cinzento. Ali a mãe. Ali no outro. Ali juntos. Sorrindo. Dia do casamento. Ali todos os três. Naquela mancha cinzenta. Ali sozinho. Ele sozinho. E assim por diante. Agora não. Esquecidos. Sumidos há tanto tempo. Sumidos. Arrancados e rasgados em pedaços. Espalhados por todo o chão. Varridos para fora do caminho, para debaixo da cama, e deixados lá. Milhares de pedacinhos. Todos os… quase que ele disse os entes queridos.[12]

 

Este é um trecho de Pedaço de Monólogo. Poderia, certamente, ser uma descrição de FILM... Poderia ser a descrição do fechador de janelas da instalação... ou poderia ser uma fala de Micha Morgan.

Essa espécie de volta sobre si mesmas que as poéticas em questão nos propõem, em sua aridez, na extrema economia de referências para o olhar de quem lê a obra, parece caracterizar a experimentação de trânsito entre linguagens operada por Adriano e Fernando Guimarães em um itinerário que antecede o seu longo diálogo com a obra de Samuel Beckett. Nas instalações que dialogam com a obra do dramaturgo – em Felizes para Sempre e Todos os que caem, assim como em seus desdobramentos em propostas para eventos de artes visuais, como O Metrônomo de Beckett, nos 50 anos da Bienal de São Paulo e o objeto-armário Luz Incandescente e as performances Respiração + e Respiração -, criadas para Não ficamos muito tempo... juntos, que tomam parte do Panorama MAM da Arte Brasileira 2003 – mantendo, porém, uma independência de leitura em relação a ela, tudo se estabelece pelo mínimo. O poder evocativo das imagens está em seu mutismo, naquilo que elas negam ao se mostrarem em plena luz... ao sustentarem o fato de não serem nada mais do que apresentam... Paradoxalmente enigmáticas...

Porque são espelhos a devolverem o olhar ofuscado pela luz que revela e cega, são tão somente o nome que receberam: DUPLA EXPOSIÇÃO.

 

Texto publicado no catálogo: GUIMARÃES, Adriano; GUIMARÃES, Fernando (org.). Todos que caem. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil, 2004. 

 


 

[1] Deleuze, Gilles, “O maior filme irlandês (Film de Beckett)”, In, Crítica e Clínica, São Paulo: 34, 1997, p.33. Este é o trecho que inicia o texto de Deleuze sobre o Film. A citação do bispo Berkeley remete às próprias afirmações de Beckett de que o filme se estrutura como um comentário a essa fala do bispo.

[2] Essa questões são discutidas em seu Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise em suas seções VIII e IX, A linha e a luz e O que é um quadro? São Paulo: Jorge Zahar, 1985, pp.90-117.

[3] Entrevista de Samuel Beckett, In Andrade, Fabio de Souza, Samuel Beckett, O silêncio possível, São Paulo:  Atelier Editorial, 2001, p. 175, do original em inglês – “There is nothing to express, nothing from which to express, no ower to express, no desire to express, together with an obligation to express” -, o autor  aponta a perda na tradução de um sentido ambíguo contido na frase, já que “nothing to express” traz o sentido de nada a expressar e de expressar o nada.

[4] In, Campos, Augusto de, O anticrítico, São Paulo: Cia das letras, 1986, p.213. A conferência de Cage é de 1949. Em 1952, ele compõe 4’33” para piano: um pianista entra no palco, senta-se ao piano, comporta-se como se fosse tocar e espera... até que se passem os 4 minutos e 33 segundos do nome. O que faz a música são as manifestações de desconforto da platéia. Cage afirma que não existe algo como o silêncio e que “nenhum som teme o silêncio que o ex-tingue e não há silêncio que não seja grávido de som” (idem, p.218).

[5] “Here form is content, content is form. You complain that this stuff is not written in English. It is not written at all. It is not to be read -- or rather it is not only to be read. It is to be looked at and listened to. His writing is not about something, it is that something itself. Sobre Finnegans Wake de Joyce, In,  Dante... Bruno... Vico... .Joyce, 1929, Citado em http://www.themodernword.com/beckett/beckett_works.html.

[6] Citado por Oppenheim, Lois, Samuel Beckett and the arts, music, visual arts and non-print media, London: Garland, 1999, p. xvii.

[7] E em algums cenas de seus antigos filmes, como anotações (invasões) dentro da narrativa.

[8] Ferguson, Bruce W, “Dangerous Liaisons and value of Things”, In Catálogo Rebecca Horn – the glance of infinity, Berlin: Scalo verlag, , 1997, pp.31-45.

[9] Não eu, Pedaço de Monólogo e Rascunho para Teatro 2.

[10] Sucessoras dos armário- abrigos, da instalação anterir dos artistas, que mantinham o duplo papel de guardar/proteger  e encarcerar/separar Ver, Panitz, Marília, “Sobre armários e seus vazios”, In Catálogo Felizes para Sempre, Brasilia, Centro Cultural Banco do Brasil, 2001, pp. 26-31.

[11] A respeito do enredo do filme ver Ripellino, a . M., Maiakóvski e o teatro de vanguarda, São Paulo: Perspectiva, Coleção Debates, nº42, pp. 250-253.

[12] Beckett, Samuel, “Pedaço de Monólogo”, em tradução feita para a montagem dos irmãos Guimarães, por Bárbara Heliodora.

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