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Por Paulo Miyada

 

Como pode Manoel de Barros - poeta brasileiro que foi objeto de leitura durante toda a preparação da peça Nada - posicionar-se no mesmo horizonte que Samuel Beckett, dramaturgo e novelista irlandês que ronda as obras de Adriano e Fernando Guimarães desde 1998? O paradoxal desse cruzamento é que o estereótipo comumente aplicado ao primeiro refere-se à dócil figura lírica do poeta de cidade pequena, preparado para encontrar beleza nas mais sutis particularidades do cotidiano, enquanto a caricatura do segundo sugere um pensador obcecado pelo absurdo da existência humana e seus mitos de progresso e desenvolvimento. Nada, o nome do projeto que desencadeou o presente processo criativo dos Irmãos Guimarães, sugere um caminho para atravessar a aparente discrepância que separa as sensibilidades de Manoel de Barros e de Samuel Beckett. Há em ambos projetos estéticos uma recorrente presentificação do nada, conquistada por vetores de similar grandeza e direção, mas com sentidos opostos.

Uma das sínteses da obra de Manoel de Barros poderia se dar em torno da máxima aqui apropriada de Francis Alÿs "Às vezes fazer nada leva a alguma coisa", enquanto uma leitura de Beckett poderia estruturar-se em torno do seu contrário análogo "Às vezes fazer alguma coisa leva a nada". Em comum, encontramos em suas cenas e imagens uma abundância de gestos sem finalidade, mas dotados de consequências, como aqueles tão recorrentes nos filmes de Hitchcock, gestos de suspensão narrativa, relativamente descomprometidos com o avanço dramático e a caracterização dos personagens, como o acender de um cigarro, um telefonema e a leitura de um jornal. Rotinas de ações ordinárias que, nos filmes de suspense, atrasam o avançar da trama e oferecem ao espectador pistas falsas e ligações com o tempo banal da vida cotidiana.

Para Beckett e Barros, esses gestos são mais que intervalos, são o próprio eixo do trabalho com a linguagem, tijolos que se acumulam e se repetem na edificação de requadros para cercar o nada. Em peças como Esperando Godot e romances como Companhia, Beckett deixa explícita a circularidade das expectativas sociais, retroalimentadas continuamente, mas inelutavelmente destinadas à frustração. O girar em falso dessas expectativas reflete-se no compasso de rotinas de movimento repetitivas e obsessivas, tudo aquilo que insuficientemente preenche o silêncio das longas esperas. Há consequências, tanto para os personagens quanto para o público, já que estar junto da expectativa e da destemperança é também uma condição de revisão de crenças nas ficções cotidianas que nos mantém obedientes às regras morais de nosso tempo. Porém, não há objetivos palpáveis - já que todo passo adiante é também um arrastar-se para trás, como nas esteiras elétricas das academias -, com exceção da morte, o fim inescapável que simultaneamente ameaça e seduz os personagens de Beckett.

Essa ausência de finalidades objetivas pode parecer uma sinonímia da angústia e da depressão, mas é também um estado libertador, afinal, se não acreditarmos em todas as promessas meritocráticas que sustentam a competição e a submissão em nossa sociedade, poderemos nos ver em um território aberto para a memória, a invenção e o jogo - não por acaso, palavras de ordem da poesia de Manoel de Barros. Para ele, o artista deve carregar o peso leve da invenção e da transvisão do mundo, dedicando-se arduamente a encontrar na própria linguagem uma caixa de ferramentas para inventar o presente. A infância e a velhice são os extremos de onde a imagem de uma vida desobrigada do compromisso e da funcionalidade torna-se plausível.

Embora com polos invertidos, as poéticas de Beckett e Barros existem porque há coisas que fazemos todos os dias e nem por isso aprendemos a fazê-las melhor. Na peça Nada, dos Irmãos Guimarães, essa ideia materializa-se pouco a pouco, começando pelos papéis sociais ocupados pelos personagens do núcleo familiar que se apresenta ao público. Avô, netas, filha e genro, tia, neto, filho, marido, esposa... Encontramos o jogo de relações pessoais já estabelecidas quando a peça tem início como vínculos fraternos e, também, como rotinas de cumplicidade e alheamento, sintonia e repetição. Quando o decorrer da peça deixa clara essa dinâmica e ela parece ser um terreno confortável para o florescer de frases líricas, uma filha desgarrada retorna à casa, e parece que algum rearranjo dos vícios e tabus acumulados pelos anos é iminente. Mas o silêncio e a falta de explicações que se segue - e se arrasta - reafirma que, ainda que exista drama, o enredo da peça não pode ser confundido com os chamados 'romances edificantes'. Os personagens não enfrentarão desafios que os tornarão melhores, mais fortes ou sequer mais maduros - eles terminarão a peça tal como começaram, igualmente encontrados e perdidos em suas repetições de afetos e alienações. O cenário em que se encena a peça reitera essa percepção: primeiro, pelo acúmulo de frascos, pote, bules, garrafas, copos e inumeráveis peças de vidro emprestadas pela companhia para evocar o ambiente de uma casa de interior desenhada pela passagem das décadas e pela coleção de objetos, suficientemente importantes para terem sido guardados, mas não o bastante para se destacarem individualmente. Depois, pela relativa inclusão do público no interior da cena, que se senta em cadeiras espalhadas lado a lado com as cadeiras dos atores, como se fossem outros convidados para a festa encenada.

Nada de especial, nada de individual e nada de edificante. Apenas estar aí, junto com uma ausência presente. Somos nós que, na urgência de editar a narrativa de nossa própria vida, atribuímos pontos chave em que supostamente tivemos uma ideia, tomamos uma decisão ou aprendemos algo - na verdade são sempre movimentos que começam muito antes de os percebermos e não terminam no instante simbólico que lhes atribuímos. Tudo em Nada existe no tempo desses movimentos estendidos e, se em algum ponto percebemos alguma transformação no estado de algum personagem, não sabemos ao certo quando foi que isso aconteceu. No intervalo curto de cada instante, não se oferecem rupturas de epifania, apenas gestos curtos, entre o convulsivo e o desatento, de mãos que se contorcem, olhos que se fecham ou pernas que perambulam pela sala.

Até que ponto essa suspensão dos eventos decisivos pode persistir no ambiente da peça enquanto os atores estão ausentes e não há espetáculo? A proposição da instalação Rumor, de Adriano e Fernando Guimarães junto a Ismael Monticelli, tenta responder essa pergunta. O mesmo espaço do teatro, fora dos horários de apresentação e sem objetos de cena como mesa e cadeiras, recebe o espectador numa quase penumbra, que apenas oscila, conforme uma série de lâmpadas incandescentes de baixa voltagem que aumentam e diminuem sua intensidade. Metáforas do nada aparecem sobrepostas uma a outra: os vidros sem função, o espaço liberado de atores e audiência, a quase escuridão, o quase silêncio e o quase vazio. Quase, pois na verdade há uma espécie de objeto de cena, uma cadeira posicionada num dos focos do espaço ligeiramente elíptico, de onde ressoa um sutil murmúrio.

Esse som é composto por fragmentos gravados pelo ator Luís Melo do monólogo de O inominável, romance de Samuel Beckett. Tocada por uma caixa de som que vibra a cadeira e amplifica seu som, a voz se pergunta sobre a constituição de um espetáculo de eventos mínimos, com frases como "isso o quê, o espetáculo, espera-se que o espetáculo comece", depois "isso é demorado, ouve-se uma voz, talvez seja um recital, é isso o espetáculo, alguém que recita, trechos escolhidos, testados, certos, uma matinê poética, ou que improvisa, mal se ouve, é isso o espetáculo", e então "é isso o espetáculo, esperar só, no ar inquieto, que isso comece, que alguma coisa comece". Questionamentos reflexivos que evocam o espaço de uma plateia e remetem a própria condição do espectador da instalação, que se aproxima da cadeira sonora após rodear o ambiente de vidros iluminados. Pois, em princípio, é impossível não mesmerizar-se pelo volume, quantidade e diversidade dos vidros em exposição, deixar-se respirar enquanto o olhar atenta às metamorfoses do conjunto translúcido atravessado pela luz oscilante. Somente depois que esse encantamento se arrefece é que o som ganha mais nitidez, pois é preciso afastar-se dos vidros e acercar-se à cadeira para distinguir suas palavras e reconhecer uma perspectiva em abismo, resultante da vertigem diante de uma narrativa que comenta a condição do espectador em uma ambiência desvestida de tantos elementos do teatro e, ainda assim, de caráter cênico.

Pois, embora se trate de uma instalação, parece impertinente tratá-la sem nos apoiarmos no jargão da linguagem teatral. Além de cenografia, os gestos de colocar em cena (mise-en-scène) e enquadrar (mise-en-cadre), centrais para a experiência do teatro (e, claro, do cinema), são também eixos do trabalho de Ismael Monticelli, Adriano e Fernando Guimarães. Retomando o mote inicial do texto, trata-se de colocar o vazio em cena e enquadrá-lo, ou, seguindo o processo criativo da instalação, enquadrar o vazio e colocá-lo em cena. É notável que, ao adaptar o dispositivo cênico concebido para uma peça teatral, os artistas tenham decidido regular a intensidade das lâmpadas espalhadas entre os vidros, seduzindo o olhar com seus brilhos variados, mas também fazendo com que o requadro ganhasse uma fragilidade próxima da de um pulmão que fraqueja, tão delicada sua respiração.

Buscando paralelos, é possível lembrar que a imagem de um pulmão de vidro, marcado pela memória de cada uma de suas peças e pontuado pelo risco iminente de quebra, havia sido evocada por Louise Bourgeois na peça Le Défi II, de 1992, estante frágil, com apenas dois pontos de apoio, e repleta de objetos de vidro colecionados pela artista ao longo de sua vida. Bourgeois odiava saber que sua memória poderia perder-se, que seus objetos poderiam ser abandonados depois de sua morte, apesar da importância que tiveram no jogo cotidiano com suas inseguranças e desejos - transformá-los em matéria de suas instalações era uma maneira de garantir sua permanência. Ao recombiná-los, Louise os colocava em cena e emprestava-lhes valor simbólico. Ao enquadrá-los nos limites de uma obra de arte, lhes atribuía narrativas abertas. À mostra na estante de metal, esses vidros não serão jogados fora e encenarão eternamente uma cena de fragilidade.

Assim também se delineia a cena da instalação Rumor, circundando um vazio, que se expande a cada vez que a sala - de paredes, piso e tetos negros - fica mais próxima da escuridão. Entre o vazio e o nada, há algumas pontes possíveis, e a escolha dos artistas foi por colocar em cena um objeto discreto ainda que tagarela. Seu discurso se repete problematizando a própria condição de uma cena, um 'espetáculo'. O texto fala em espera, algo que a própria cadeira impõe, já que é preciso ouvir sem sentar-se (o som torna-se abafado) e o escuro faz com que o horizonte de vidros pareça distante quando se está perto o suficiente do som para compreendê-lo. Além disso, há intervalos de silêncio e, se for mesmo do interesse do público capturá-lo por inteiro, será preciso permanecer por ali durante alguns minutos, em pé, talvez movimentando a mão de forma repetitiva, andando em círculos ou resistindo ao impulso de conversar com a pessoa ao lado. Nessas durações implicadas pela espera por um texto circular, quem entra em cena é o próprio público, é ele que habita o vazio e torna-se cúmplice do rumor sussurrante de Beckett na evocação do nada.

 

2012

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