Por Glauber Coradesqui
Fernando, pode começar contando um pouco sobre suas experiências com a Dulcina de Moraes, quando você era aluno da Faculdade?
Fernando: Eu entrei na Faculdade [de Artes Dulcina de Moraes] por causa dela. Foi uma coisa maluca. A Dulcina já era estrela. Eu tinha uma amiga que fazia dança no terceiro andar [da Faculdade]. Uma vez fui buscá-la ali. Eu encontrei com a Dulcina no elevador. Quando eu peguei o elevador no térreo, o elevador desceu e a Dulcina entrou – estava no teatro – e subiu. Ela virou para mim e falou: – Os ensaios de Bodas de Sangue vão começar daqui a quinze dias, vinte dias, sei lá. Eu falei: – Mas eu não sou aluno da Faculdade. Ela virou para mim como se aquilo fosse a coisa mais extraordinária do mundo. “Como alguém não faz teatro”? Eu era um ET. Era formado em Relações Internacionais, na UnB, e tinha vindo da Engenharia Civil. Faltam oito matérias para me formar em Engenharia (risos). Dulcina falou: – Vem fazer vestibular, então! Quando? Dois dias depois. É claro que os ensaios... eu tinha sido escolhido – acho eu – porque eu tinha cara de espanhol; ela vivia dizendo que eu tinha cara de espanhol. Mas eu fazia figuração. Segurava uma bandeira lá no fundo, fazia público do casamento. Eu me vejo hoje me comportando na coxia muito como ela fazia, um silêncio absoluto. Ela já estava um pouco mais velha e não lembrava o texto muito. Aí, aconteceu uma coisa – que, hoje, eu acho genial – que era um recurso que na época eu não entendia muito. Tinha um cenário que era uma casa, com uma madeira muito fininha. Ele encostava nessa parede, principalmente nos textos mais dramáticos, e a Vera, que era a sobrinha que morou com ela e cuidou dela muitos anos, ficava atrás falando o texto. Você via a Vera falar o texto aqui e ela pegar aquele texto e, em fração de segundos, transformar aquilo. Enquanto a Vera falava, ela fazia milhões de caras, de sofrimento, ela suspirava, ela gemia. Ela começava no canto de lá e terminava no canto de cá fazendo o texto. Dessa cena eu nunca esqueci.
Adriano: Eu [me] lembro de assistir escondido os ensaios da Dulcina lá no mezanino, quando o Fernando era aluno. Ela fazia uma coisa que hoje seria execrável: ela dizia como você deveria fazer. Ela ia lá, fazia, dava uma personalidade ou um jeito “x” para o negócio. Em cada papel, ela dava um show particular.
Como era a Faculdade nessa época?
F: Era uma época muito bacana. Vários atores, vários diretores, várias pessoas bacanas de teatro vieram dar aula. Veio Henriette Morineau, veio Fernanda Montenegro, veio um cara que era especialista em maquiagem da Rede Globo, que era o Erick. Era o que tinha de melhor. A Dulcina trazia e eles davam um curso de uma semana, dez dias. Ela foi minha professora nos dois últimos semestres, que era a diplomação.
A formação de vocês acontece aí?
F: Praticamente, todo o nosso estudo, é um autoconhecimento. Eu nem sabia o que tirar da Faculdade na época. Tanto é que, depois, com os alunos – a gente assumiu na Faculdade para dar a matéria que a Dulcina dava, Montagem – eu pensava de mostrar coisas que eu nunca tinha visto.
Mas qual foi o momento em que vocês falaram “agora somos diretores”?
A: Eu acho que nunca houve esse momento. Na verdade, quando a gente fez a primeira peça eu não tinha experiência nenhuma – só de ver os outros fazendo. Provisoriamente Paixões veio de uma imagem e a partir de uma imagem a gente foi buscar o texto, foi buscar as atrizes, construiu a dramaturgia. Eu nunca fiz faculdade de teatro – o Fernando era ator. Como eu não sabia como fazer, eu não tinha muita ideia do que era certo ou errado. Isso me deu uma liberdade de criação muito grande. Eu tinha uma noção de espectador e de alguém que ficava curioso para ver como funcionava. Eu sempre tive curiosidade pelo mecanismo. Sempre foi feito muito de uma maneira “eu não sei fazer”. Foi muito rápido.
Quando vocês começam a se aproximar das artes visuais?
A: Tinha um crítico aqui, um curador, Claudio Telles, que viu nossa peça [MACBETH MAUSER] e escreveu um artigo no Jornal de Brasília dizendo que para ele aquilo se tratava muito mais de uma performance (aí ele trouxe o termo) dentro de uma instalação do que efetivamente de uma peça de teatro. Foi o primeiro que apontou para esse caminho das artes visuais.
E a participação na Bienal de Arte de São Paulo, em 1991?
F: Estávamos em cartaz na Sala Alberto Nepomuceno e veio um curador da Bienal, também já falecido, que é o João Cândido Galvão. Ele veio a Brasília e resolveu ver a peça da gente. Quando terminou, ele se apresentou, falou que era curador e que queria o contato. Fomos selecionados para a Bienal. Era um espaço gigante. Aí, tinha a gente, esse ano, tinha a Daniela Thomas, tinha o [J.C.] Serroni. A revista Veja! fez uma matéria sobre o que era imperdível na Bienal de São Paulo. Eram dez projetos e um deles era a gente.
Como era o projeto?
A: Foi só o cenário [de MACBETH MAUSER]. Era uma espécie de instalação com música. Fizemos uma outra parte – na época a gente tinha um fotógrafo, chamado Ricardo Junqueira – que era um outro procedimento que a gente tinha. Pegávamos as atrizes e levávamos para uma locação fora do teatro para fazer fotos. Aconteciam improvisos, era improvisação. Muita coisa da peça mudava depois desse ensaio fotográfico. Na Bienal, era como se fosse uma instalação arqueológica, como se tudo aquilo tivesse sido desenterrado de uma civilização anterior. Esse cara que fazia as fotos, ele revelava em pedaços de concreto. Era tudo meio feito de resto de serralheria, tinha uns cubos...
O encontro com Hugo Rodas foi nessa época? Ele influencia em algum sentido as criações de vocês?
A: A gente já conhecia o Hugo, mas o Hugo não conhecia a gente. Ele trabalhava na Secretaria de Cultura, era assessor da Secretaria de Cultura...
F: A gente chega na Secretaria de Cultura, conversa com ele e ele fala: – Quando é que vocês vão me chamar para trabalhar com vocês?
A: Eu não lembro disso (risos). Mas memória não é verdade. Ele chamou a gente para fazer uma temporada no Teatro [Nacional] e eu disse que não tinha elenco. Ele falou que fazia. Aí, chamamos outro elenco, fizemos outra encenação e montamos o que chamamos de Macbeth Ainda Mouser. Mudou tudo, era um cenário de andaimes, de três andares. Quando a gente conhece o Hugo a gente vai mais para o teatro, mergulha mais nesse universo onde a gente chegou meio intuitivamente.
Essa parceria entre vocês se consolida na montagem de Dorotéia? Como começou o processo desse espetáculo?
F: Nessa época tínhamos uma parceria muito boa com a Embaixada da França e fizemos um projeto que se chamava 44, 48, 49. Eram peças, três leituras dramáticas de pós-guerra; escritores que, por incrível que pareça, eram tão díspares mas que tinham um sentimento, um pouco... Foi Dorotéia; Esperando Godot, do [Samuel] Beckett; e Entre Quatro Paredes, do [Jean-Paul] Sartre. Todos tinham um aprisionamento, um conceito que os unia.
O que dessa leitura chegou à montagem final?
A: Já tinha o cerne da Dorotéia, que era a maneira de como enxergar aquilo, que a gente montava como farsa. Tradicionalmente, no Brasil, Dorotéia era montada como tragédia. Nós nunca conseguimos enxergar a Dorotéia nesse lugar. E teve tal apelo com o público aquele negócio que a Denise [Milfont] falou: – Eu vou montar essa peça profissionalmente. Eu vou convidar vocês para dirigir e vou arranjar o dinheiro. Estreamos em Natal (RN), fizemos o Nordeste inteiro antes de chegar ao Rio.
E o que vocês acham que lhes deu o Prêmio Shell de Melhor Direção?
A: Eu acho que foi a releitura, a maneira com que a gente enxergou o Nelson naquela época.
F: E tem uma redescoberta do texto. Eu acredito muito nisso.
Contem um pouco sobre a encenação de DOROTÉIA.
A: O cenário era um triângulo. Elas morriam, mas continuavam na peça fazendo a sonoplastia ao vivo, como as personagens mortas. Era como se o samba fosse entrando. A Dorotéia traz um tipo de câncer para aquela casa, que era a alegria, o sexo, que era representado pela música. Cada vez que morrem, o samba vai entrando na peça. Elas ficam lá, como coro, depois de mortas. Começavam no genuflexório. Passavam o primeiro ato inteiro de joelhos e só eram vistas daqui [do peito] para cima. A encenação toda do primeiro ato, elas não levantavam dali jamais. Era toda presa e era toda reta, ninguém andava. O movimento era uma coisa subversiva na peça.
Qual foi o maior desafio na criação desse trabalho?
A: O Nelson tem esse balanço entre o ridículo e o trágico. Tem a farsa, mas não é, assim, completamente uma comédia rasgada porque você subtrai uma parte importante do Nelson, você domestica o negócio. O negócio é o sublime e o ridículo juntos, o patético, tudo ali misturado com o humano, senão, não tem sentido fazer. O duro de Dorotéia é conseguir essa mistura do sublime, com o humano, com o trágico. O Nelson é tudo junto ao mesmo tempo. Transita por mil lugares diferentes e a riqueza está justamente nisso.
Como foi a recepção de Dorotéia?
F: É engraçado que Dorotéia conseguiu uma coisa que é muito difícil: agradar em diversas parcelas. A pessoa que nunca tinha ouvido falar do Nelson, que não conhece, gostava; a crítica gostava. É muito difícil conseguir uma coisa que a crítica gosta e que o publico gosta e vai. A Bárbara [Heliodora] fez uma crítica.... A nossa divulgadora no Rio [de Janeiro] falou que ia convidar a Bárbara para assistir. Quando ligou para ela – a Bárbara tem ódio desse texto – quando falou que a gente ia fazer Dorotéia, ela falou: – Meus pêsames! O resultado é que ela foi assistir, gostou e fez uma crítica maravilhosa. Quando ganhamos o [Prêmio] Shell, eu, Adriano e Hugo na plateia – vestidos pelo Lino [Villaventura], o Lino emprestou umas camisas para a gente – na hora que chamaram o nome da gente, nós três levamos uma fração de segundos para levantar.
Em 2005, vocês realizam um espetáculo performático intitulado Fotohamlet. De onde partiu a ideia do trabalho?
A: Ligaram para a gente de um festival dizendo que queriam um trabalho nosso, mas que não tinham dinheiro. Todo mundo pede isso para a gente: tem que ser genial, gastando nada, ganhando menos ainda... Aí, pensei: – Vamos fazer uma peça de propósito, para festival, uma peca que não existe, mas que existe só para ser fotografada.
E como isso aconteceu?
F: A cenografia eram 1.200 rolos de papel higiênico. Os atores não tinham figurino, porque iam ficar pelados. Era uma ironia mesmo com o festival. Eu sempre brinco que esse é um trabalho que eu gostaria muito de voltar porque eu adoro o conceito da história e há cenas que podem ser feitas. A gente não tem a obrigação de fazer o Hamlet, então, há cenas que você quer fazer. Tinha uma cena muito boa, que era o Rei Claudio desfilando com a corte.
A: A morte da Ofélia realmente funcionava como cena porque o papel higiênico ia se comportando como água. E eu lembro que o começo da peça nós não tivemos culhão para fazer, na verdade. Eu queria começar com a morte do Hamlet-Pai. Ia pegar uma taça de cristal com água, com um peixinho dourado dentro, o William [Ferreira] ia derramar a água no chão, ia ter um foco no peixinho e a gente ia assistir ao peixinho morrer. Aí, começava FotoHamlet. Mas quando falamos de matar um peixe de verdade em cena, o elenco quase abandonou o espetáculo. Aí, usamos um peixinho dourado de plástico.
Por que Hamlet?
F: Porque é uma peça que a gente adora.
A: E fora que é uma ironia, né?! Hamlet é a peça das peças, a peça número 1 do mundo. Quem não quer revolucionar Hamlet?
Esse tipo de obra propõe e pressupõe outra disponibilidade do espectador. Como vocês veem as questões de recepção no teatro e na arte contemporâneos?
A: Quanto mais você se afasta do conhecido, mais a sua poética vai ser estranhada. Existe essa dificuldade da recepção. Está muito longe do jornalista comum, do crítico comum. Não está na imprensa, não está no sistema. Geralmente, quando a crítica vai falar, ela descreve. Nossas críticas do Beckett são muito descritivas.
Como chegam ao Projeto Beckett? Tudo começa com a entrada no quarto da avó de vocês após a morte dela?
F: Quando vimos esse quarto com os objetos lá dentro, tinha muita coisa, mas coisas do cotidiano: cartas, o número de pacientes que ela atendeu, receita de remédios, era uma casa normal. Pensamos em fazer uma exposição com isso. A uma certa altura, percebemos que isso era muito bacana enquanto família, que tinha toda uma ligação afetiva com isso. Aí, começamos a pensar o que poderia falar sobre memória que já tivesse alguém que falasse sobre isso.
A: A história era achar os objetos que uma pessoa deixou e entender como ela tinha sido a partir do que ficou dela, sem tê-la conhecido – por isso essas anotações, fotos, diários. Ou seja, o que o objeto pode narrar a respeito de uma pessoa? Que tipo de memória o objeto pode trazer? Aí, chegamos a [Samuel] Beckett. Em Dias Felizes tem uma frase que é: “as coisas têm vida própria”, que é exatamente isso de conhecer alguém através de uma foto. E talvez essa questão não fosse uma questão muito tratada pelo teatro.
O que esse encontro significou no primeiro momento?
A: Quando encontramos o Beckett abre-se um mundo, um universo novo de um cara que nasceu no começo do século [XX] e trouxe uma inovação muito grande no sentido que ele começou escrevendo, depois foi para o teatro, fez ensaio, fez poesia, fez prosa, passou pelo cinema, teve peça para televisão. Parecia que tínhamos encontrado um interlocutor, uma pessoa com quem conversar, e isso traz uma liberdade muito grande porque investimos mais em fazer o que estamos afim. Não importa o meio. Qual a melhor maneira de mostrar isso aqui? Qual o melhor lugar? O Beckett, então, explode no sentido de que vira instalação, vira performance, trabalhos autorais nossos que não são só a montagem da peça do Beckett, mas que criamos a partir da existência dele. Muitos anos depois, descobrimos que se trata de um procedimento que gostamos muito que é trabalhar a partir de.
Como chegaram à formatação dos espetáculos e performances que se apresentaram ao longo, principalmente, dos anos 2000?
F: Começamos a pesquisar exaustivamente a obra dele e quanto mais a gente lia, mais a gente se apaixonava. Até que chegamos nas peças curtas, pelas quais temos certa fascinação. São peças muito pouco conhecidas, muito pouco montadas. Não só no Brasil, mas também lá fora. Fomos atrás de uma tradução específica, que foi a tradução da Bárbara [Heliodora]; tinha que ser um profundo conhecedor da letra, da fonética.
A: São peças independentes que vão se recombinando e proporcionando novas leituras nessa recombinação de uma com a outra. Antes dávamos nome, mas depois do quarto paramos de dar nome porque vimos que os arranjos eram quase infinitos.
De certa forma, o encontro dispara um processo de auto-outorga do trabalho de vocês?
A: O Beckett foi um marco de libertação e reconhecimento de um caminho que se abriu, que explodiu na nossa frente, de não precisar ir só por aqui. Desde o começo, vamos parar na Bienal, fazemos uma exposição sempre junto. Hoje, esse negócio está super presente, mas há 15 anos atrás ninguém falava, não era como é hoje. Se apanhava muito da crítica, de tudo. E que tipo de discurso vai dar conta desse tipo de experiência? Não é mais o discurso a que estamos acostumados.
F: Essa questão está premente, tem muita gente fazendo, mas não se tem uma experiência com o grande público. Nas próprias matérias sobre o assunto, apega-se a uma coisa que é concreta – por exemplo, a experiência de uma atriz – mas não se chega ao cerne da questão. E essa é a maior questão da arte contemporânea. Eu sou muito curioso com isso. Como isso chega ao mercado para termos de sobrevivência do artista?
Entrevista publicada em: CORADESQUI, Glauber. Canteiro de obras: notas sobre o teatro candango. Brasília: Filhos do Beco, 2012, p. 160-167.