top of page

Por Beth Néspoli

 

Um público de atores e estudantes lota o teatro de um centro cultural, no Rio, para ouvir a palestra “Redirigindo Beckett”, do norte-americano Stan Gontarski, dentro da programação ‘Resta Pouco a Dizer”, reunião de peças de Samuel Beckett dirigidas pelos irmãos Adriano e Fernando Guimarães. Pudera, o currículo atrai, recomenda.

Diretor teatral premiado, ele foi amigo pessoal do dramaturgo irlandês: foi seu parceiro artístico em mais de um projeto, entre eles  “Improviso de Ohio”, cujo original foi o primeiro a ler, e a adaptação para o palco do conto “Primeiro Amor”. Gontarski também é Ph.D em Estudos Irlandeses do Século 20, Modernismo Anglo-Europeu e Teoria da Representação e só sobre a obra de Beckett publicou sete livros.

Ele havia preparado uma série de projeções para a palestra. ‘Ficamos um tempão acertando a iluminação e ao fim ele ficou fora da luz e não usou as imagens’, observou o diretor Fernando Guimarães. O fato é que Gontarski mudou de idéia, pelo que deu a entender, pela surpresa de estar diante de uma platéia formada por muitos jovens. Com a primeira imagem, o rosto de Beckett projetada ao fundo, falou de seu entusiasmo com a faixa etária do público, com a lotação do teatro, foi para a frente do palco, brincou com a rivalidade entre cariocas e paulistas, contou histórias, falou pouco e abriu para perguntas. Buscou diálogo. entre as idéias, enfatizou a importância dos enigmas nessa obra singular. Criticou um filme baseado em “O Improviso de Ohio” interpretado pelo ator Jeremy Irons. ‘Ele fazia os dois personagens, o ouvinte e o leitor. Talvez eles sejam mesmo um só homem, talvez um deles seja um espectro, não se sabe. Se o mesmo ator faz os papéis, mata o mistério.’ E fez a platéia do Centro Cultural Oi Futuro rir ao criticar as tentativas de psicologismo nas encenações. ‘Atores sempre querem entender as razões dos personagens. Beckett gostava de dirigir os alemães, porque se ele os mandava andar de lá para cá eles o faziam, sem discutir. O ator norte-americano quer sempre saber qual a sua motivação.’

Alguém perguntou como era o diretor Beckett. ‘Não era um bom modelo. Ele fazia aquilo que os atores odeiam: dizia as falas do jeito que queria ouvir, em vez de ajudar os atores a encontrar o tom. Mas dava princípios: nunca fale e se movimente ao mesmo tempo.’ No dia seguinte, Gontarski recebeu a reportagem do Estado. Pediu desculpas por não falar português, ‘idioma que tem uma sonoridade linda’, e brincou: ‘pode perguntar o que quiser, desde que eu não tenha que responder qual a minha cor favorita'.

 

No Brasil há um estudo interessante, Samuel Beckett, ‘O Silêncio Possível”,de Fábio de Souza Andrade, que relaciona sua obra à crise do sujeito, da representação do mundo, das totalidades. Pirandello fez da impossibilidade de apreender o real tema de suas peças. Beckett encontrou a forma cênica para esse tema. Na palestra, o senhor insistiu que não se deve procurar desvendar mistérios porque ‘Beckett diz o que sabe, mas não sabe tudo’. Não seria precisamente o contrário? Beckett encontrou uma forma de dizer o que não sabe, o que é impossível saber?

 

Minha cor preferida é azul. Seria mais fácil responder isso. O paradoxo que persiste em Beckett é que não é possível dizer precisamente se algo é preciso em sua obra. Não se pode dizer precisamente que as coisas não podem ser expressas com precisão. Esse é o X da questão. Virginia Woolf tem uma frase sobre a modernidade: ‘A vida não é uma série de focos de luz, mas um halo luminoso difuso’, outra forma de tratar do mesmo paradoxo. Tentar eliminar os enigmas em sua obra, buscar um sentido com precisão, é matá-la. Quero anotar o nome do autor desse estudo, Fábio?

 

O material que anunciava sua palestra, Redirigindo Beckett, adiantava que o senhor trataria como problema o fato de esse autor de ‘vanguarda’ estar sendo tratado como clássico. Mas esse não é um caminho natural de todo grande autor, perdurar no tempo pelo que atingiu de universal e não pela ruptura?

 

É e não é. Roland Barthes diz que a burguesia sempre tem um jeito de diluir a potência da vanguarda. Há alguns anos fui assistir a uma comédia de Shakespeare com uma platéia de alunos de uma universidade e só eu ria. Eles estavam numa igreja para adorar um autor clássico e eu estava ali para me divertir com Shakespeare. Não se pode fazer clássicos de forma museológica e nem manter Beckett no pós-guerra. O perigo com suas peças é produzir várias cópias xérox.

 

Ao que parece, o que o senhor chama de tratar como um clássico é a cristalização. Mas ao contrário de Shakespeare, Beckett tem rubricas muito precisas. Como revitalizá-lo sem fugir delas?

 

Essa é a dificuldade, o truque, a arte. Ser fiel e inovar. Por isso os Guimarães se destacam, fazem isso muito bem. Seguem fielmente a dramaturgia, os tempos, os ritmos, mas acrescentam um detalhe, como as agulhas nas luvas das atrizes em “Ir e Vir”, e ampliam sentidos. O truque de Fernando e Adriano é manterem-se perfeitamente fiéis e ainda assim conseguirem colocar a visão deles. Não é o mesmo se alguém olha e não reconhece Beckett. No caso deles, os espectadores vão reconhecer: isso é Beckett, é fiel e ao mesmo tempo é feito para uma nova era. Mas se você me pergunta qual o limite entre seguir as rubricas e inovar, isso eu não posso responder. Não há uma fórmula.

 

Entrevista publicada no jornal O Estado de São Paulo, 2008.

bottom of page