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Por Juliana Monachesi

 

Leia trecho da conversa que o Canal Contemporâneo teve com os irmãos Guimarães no dia 29 de maio, em Porto Alegre, durante a montagem da exposição, em que falam sobre a relação de sua obra com a de Samuel Beckett:

 

Sobre o "encontro" com Beckett 

 

Fernando: Nós já conhecíamos bem a obra do Beckett antes de fazermos nossa primeira exposição como artistas. Havíamos montado "Esperando Godot" em 1996, por exemplo. Mas a aproximação maior aconteceu quando nós passamos por uma experiência familiar que decidimos transformar em um trabalho, que foi naturalmente ao encontro de Beckett. O projeto partiu de um quarto que ficara fechado durante 40 anos na casa dos meus avós. Eu tinha um avô que era médico, que faleceu muito cedo, eu nem o conheci, e minha avó fez do quarto onde ele ficava uma espécie de santuário, onde nós nunca pudemos entrar.

Então, depois que ela faleceu, a gente entrou no quarto e viu as coisas que ela tinha guardado dele; havia cartas, fotografias, registros dos pacientes dele, e foi por meio desse material que nós começamos a saber como era aquela pessoa. E como não tínhamos conhecimento concreto algum sobre este avô, acabamos construindo uma identidade para ele; se era verdadeira ou não eu não sei, mas era a identidade possível. Partindo desse material, resolvemos mostrar em uma exposição algumas coisas que falassem sobre essa identidade construída. E como estávamos trabalhando o tempo inteiro com essa questão da memória, quando fomos escolher o que entraria de texto no trabalho, descartamos a idéia de traduzir as cartas que ele tinha deixado -porque tinham um valor muito pessoal, que, enquanto dramaturgia, não se sustentava, e chegamos em Beckett, que fala muito sobre isso.

 

Sobre a metáfora do chapéu

 

Fernando: A questão do chapéu em Beckett é um exemplo de como ele trabalha a questão da memória. Em várias obras ele se refere ao chapéu, dizendo o seguinte: que o filho nasce e o pai faz com que o filho use chapéu, então o filho se rebela em relação à utilização desse chapéu o tempo inteiro, até que um dia o pai morre e o chapéu pode ser jogado fora, mas a cabeça já está acostumada com o chapéu, ou seja, essa identidade que vem herdada de várias formas é um tema freqüente em Beckett.

 

Sobre a linguagem descarnada

 

Adriano: O que primeiro a gente conheceu do Beckett foram as peças, só depois a gente foi para a literatura. As peças dele têm um aspecto singular, que é o texto não ser o principal, como em geral é no teatro. O Beckett constrói uma cena toda na qual o tempo é fundamental, ou a visualidade, e isso foi uma coisa com a qual a gente se identificou muito. Para ele, não é só o som da palavra que tem importância, nem só o significado da palavra tem importância.

Fernando: Uma coisa que a gente gosta muito em Beckett é essa questão de descarnar a coisa para chegar no mínimo da essência. Outro exemplo disso é que ele escrevia suas obras em um idioma e traduzia ele mesmo para outro idioma, nem sempre mantendo na tradução o texto original, porque se era o som de uma palavra que o agradava, então ele traduzia esse som.

 

Sobre a respiração

 

Adriano: O Beckett era irlandês, a língua mãe dele era o inglês, mas ele gostava de escrever em francês, justamente para não ter tanta possibilidade de alusão, para a palavra ser mais pura, digamos, estar menos ligada a outras experiências. Depois ele traduzia para o inglês. Formalmente ele já interessava à gente por ser uma pessoa que transitava por muita coisa, trabalhava com várias mídias diferentes, e conceitualmente nos interessavam essas questões de que ele está sempre falando, como a finitude...

Fernando: Tem uma peça dele que tem 35 segundos e que mostra a essência do discurso dele. Chama-se "Respiração". Ilumina-se o palco e nele há montes e montes de lixo. Aí começa a clarear uma luz muito suavemente, ela entra com um choro de bebê, depois entra uma inspiração, aí começa a expiração, a luz começa a diminuir até que se apaga com um choro de bebê de novo.

Adriano: Ou seja, a vida em 35 segundos, e o que você tem ali é lixo, matéria orgânica, aquilo de que o ser humano é feito. É uma síntese maravilhosa o que ele obtém nesta peça. Quer dizer, ele chama de peça, mas não tem ator, não tem texto... é uma obra visual.

 

Entrevista publicada no: Canal Contemporâneo, sessão Quebra de Padrão, 22/06/2004.

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