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Por Amarílis Lage

 

"Todo o meu trabalho quer apenas prestar atenção em coisas para as quais ninguém liga." Quem é o autor dessa frase? Duas alternativas: o poeta brasileiro Manoel de Barros, de 95 anos, ou o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989).

Quando receberam essa pergunta de um amigo, os irmãos Adriano e Fernando Guimarães, que por 14 anos montaram obras de Beckett e agora entram em cartaz no Rio de Janeiro com o espetáculo "Nada", inspirado em Manoel de Barros, apostaram no brasileiro. E erraram.

A brincadeira mostra um dos pontos de conexão que podem ser encontrados entre o trabalho dos dois escritores. "A obra poética deles é bem diferente, mas a maneira como eles pensam a arte tem várias aproximações", afirma Adriano Guimarães.

E frases de Barros e de Beckett se misturam em "Nada", que os irmãos Guimarães dirigem com Miwa Yanagizawa. A peça, que estreia amanhã no Oi Futuro do Flamengo, mostra a festa organizada por uma família interiorana para celebrar os 80 anos do avô (Lafayette Galvão). "Não é um espetáculo sobre Manoel de Barros, mas uma resposta a partir do que a poesia dele nos inspirou", afirma Adriano.

Ele e o irmão começaram a se interessar profissionalmente pela obra do poeta mato-grossense há cerca de dois anos, quando deram um curso sobre Barros em uma faculdade de Brasília, experiência que resultou em uma montagem feita com os alunos. A partir daí, fizeram palestras, ciclo de leituras e outras ações sobre a obra do autor. "O que nos levou a ele foi uma identificação com o fato de ele sempre se remeter à infância; a gente também teve uma vivência de [cidade de] interior", conta Adriano.

Apenas mais recentemente, porém, lendo um livro de entrevistas de Barros, que eles começaram a fazer associações entre o poeta e Samuel Beckett, de quem já montaram textos como "Dias Felizes" e "Ir e Vir".

Uma delas é a ideia, presente nos dois autores, de que os objetos têm narrativas. A descoberta de cartas e fotos do avô materno, que nunca chegaram a conhecer, despertou os irmãos para o texto de Beckett. "A gente começou a imaginar como seria esse avô a partir dessas coisas, dos fragmentos que ele deixou. Os objetos estavam impregnados de memória", diz Adriano. E eles reconheceram esse aspecto na obra do irlandês. "Tem uma frase da Winnie, de 'Dias Felizes', que diz: 'As coisas têm vida própria'. Os objetos do Manoel também carregam muita história. Eles pulsam. É a mesma coisa que 'detonou' o Beckett lá atrás para nós."

O cenário de "Nada" busca levar isso em consideração. E, em busca de elementos cenográficos, os irmãos encontraram no bairro de Santa Teresa um casarão no qual um homem de aproximadamente 60 anos reunia objetos acumulados durante mais de quatro décadas. "Aquele lugar deveria ser um ponto turístico no Rio", brinca Adriano. "Não se trata de um antiquário. Há lixo, madeira velha... Tem uma sala fantasmagórica só de brinquedos quebrados, com uma sequência de bonecas sem cabeça."

Um dos espaços desse casarão guardava garrafas de vidro, milhares delas, cobertas de poeira. Os irmãos pegaram essas peças, "de 4.000 a 5.000", e as colocaram no local que seria tradicionalmente destinado ao público no teatro. "A gente diz que a peça é feita para os vidros", diz Adriano.

Já o público será instalado no palco, como se fossem convidados da festa de aniversário. Tímidos podem ficar tranquilos: não há nenhuma interação obrigatória com atores. "O tempo todo você tem a liberdade para interagir ou não, dançar ou não, comer ou não. Seria muito 'anti-Manoel' obrigar alguém a fazer alguma coisa", diz Adriano.

Essa escolha também busca dialogar com a obra do poeta. "Decidimos investigar como ele utiliza a linguagem para fazer a obra dele e começamos a pensar nessa desestabilização que ele faz da sintaxe, da morfologia, da gramática", diz Adriano, citando versos de Barros como "O menino de ontem me plange". Na opinião dos irmãos, um espetáculo convencional, com a tradicional separação entre o público e o elenco, também seria, pelo jeito, algo "anti-Manoel."

 

Entrevista no jornal Valor Econômico, 24/05/2012.

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