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Por Luiz Fernando Ramos

 

Vida, modo de fabricar. “Nada”, espetáculo dos irmãos Guimarães a partir da poesia de Manoel de Barros, exercita a possibilidade de condensar atos humanos sem drama, e alcançar, com arte, o fluxo do que é vivo e pulsa. Essa proeza não é fácil, mesmo que pareça, tal é a naturalidade com que alguns artifícios construtivos a engendram.

O poeta cuja fala inspira os falantes em cena é um artesão do maravilhoso mundo das coisas ínfimas, ou distraídas da nossa atenção, o que inclui desde as procissões de formigas a vencer o jorro de urina dos meninos do interior, até a cumplicidade discreta dos lobisomens com as viúvas e as virgens nas noites de lua.

Quando essas coisas não são só lidas, mas faladas e ouvidas, já se está a um passo do recital, ou da narrativa que se quer dominante e conduz os ouvintes com rédea curta. O difícil era fazê-las fora da aura própria às pepitas literárias, a soarem como se ditas na sala de jantar, em plena festa de aniversário, sem nenhuma pretensão didática, como acasos e acidentes, como se fossem a própria vida, inevitavelmente dramáticas.

Apresenta-se com primor a celebração de 80 anos de um patriarca, regulada pelos hábitos simples do Brasil central e as tensões intrínsecas a qualquer família planetária em que conflitem interesses e projetos. Esta é a carcaça ou andaime dramático que garante o andar do tempo, comprimido no espetáculo, mas aparentemente solto, como se corresse sem a pressão de espectadores, ainda que tangível diante deles como um rio.

Ao fundo do que transcorre para esses familiares, colhidos como que de pronto pelos convidados que recebem, opera uma retórica barroca de cristais e vidros acumulados numa espessa instalação. Esta já esteve sozinha a se encenar, mas, agora, regredida à condição cenográfica, apenas cintila a evidência de que se assiste uma representação.

Talvez tudo isso, incluindo a invenção de viventes, possa trincar, o que revelará o teatro que havia, ou que já não há. Mas o silêncio das coisas é maior que qualquer aplauso e persiste insubordinado, a confirmar a raridade do havido e a continuidade do jogo, agora de volta do espelho para o de sempre, velho teatro da vida.

 

Texto publicado no livro: GUIMARÃES, Adriano; GUIMARÃES, Fernando. Nada Expandido. Brasília: Filhos do Beco, 2013.

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