Por Nicolas de Oliveira
No século dezesseis, Giulio Camilo inventou o ‘Teatro da Memória’[1]. Este mantinha como base a ideia de memória como cenografia ou pano de fundo. Tratava-se de anfiteatro ao contrário, o palco era ocupado por um único espectador, enquanto plateia, subdivida em sete partes, segundo o teatro clássico de Vitruvius, continha espaço reservado à divulgação da memória.
O sistema utilizado por Camillo aplicava o conceito da memória como chave para compreensão da mente humana. Camillo ocupou-se seguidamente com a tradução da imaginação em objetos e símbolos que o “Olhar Corporal” (corporeal eye) pudesse perceber. Existem muitas dúvidas quanto à tradução do conceito mental para um sistema com aplicação útil ter ou não se completado e quanto ao teatro da memória ter sido realmente construído.
O conceito da ligação entre espaço e memória já vinha de outrora, dos tempos da antiga Grécia. Nesses tempos, os oradores, cuja arte retórica era muito prezada, serviam-se da correlação entre um espaço imaginado e a própria narrativa. Esse espaço, inventando pelo orador segundo as leis da arquitetura prevalecentes nessa altura, servira de aide-mémoire, ao ponto que as diversas partes da palestra tinha seu ‘duplo’ no edifício mental pelo qual passeava o interlocutor.
A história contada acerca do poeta Simonides[2] apresenta-nos a memória do espaço como instrumento útil: o poeta Simonides fora convidado para apresentar um poema lírico durante um banquete feito por um nobre chamado Scopas. Após a oração, Scopas informou ao poeta que só lhe daria metade da soma anteriormente combinada, já que metade do poema fora uma homenagem aos deuses Castor e Pollux e não interamente dedicado ao anfitrião. Pouco mais tarde, Simonides foi convocado, da mesa de jantar, por dois indivíduos que o esperavam à entrada. Logo que deixou a sala, o teto desabou sinistrando todos os hospedes. O poeta salvara-se por conta do aviso dos personagens que o esperavam, que eram, na realidade, os deuses que mencionara no seu poema. Quando chegaram os parentes da vítimas do desastre, fora impossível identificar os corpos esmagados. Só Sismonide pôde ajudar nesta tarefa, pois que, aplicando o método da arte da memoria usado por qualquer orador, chegava a lembrar do lugar exato no qual se tinha encontrado cada elemento do público.
Aristóteles afirmou na sua obra intitulada Poética: “Assim o efeito da tragédia pôde ser observado sem representação ou atores”[3], sugerindo, desta feita, que houvera outro espaço expressivo. O cenário não serviria simplesmente como pano de fundo, mas pretendia uma realidade própria.
A instalações dos Irmãos Guimarães localizam-se naquele espaço híbrido entre as tradições do teatro, da performance e das artes plásticas. Por conseguinte, a obra aproxima-se dessas variadas disciplinas, sem que, por sua vez, se transforme numa delas. Nos anos sessenta, durante a era do chamado ‘alto modernismo’, o crítico Michael Fried[4] afirmara que tudo o que se encontrava entre as banalidades, mas aproveitam-se da mesma tática. O texto ‘readymade’ é marcado por sua popularidade, sua passagem ao idioma e conhecimento quotidiano. Brecht contentava-se com a simulação da ação, enquanto a obra Felizes para Sempre, entre outras, exige uma outra leitura, sobreposta no significado prévio. O resultante trabalho não se reduz nem a uma homenagem nem a uma crítica, ao contrário apresenta-se como memória distante do original. Essa memória é fácil, pois o novo trabalho é tão autônomo que acaba por simular uma intimidade que não existe realmente.
A instalação é composta por uma série de armários de vidro de autoria dos cenógrafos e fabricados especialmente para exposição. Estas vitrines servem para dois propósitos. Por uma lado, servem como vitrines no sentindo clássico, ou seja, espaços para guardar e expor objetos de valor e impacto visual. Por outro, fazem-se de palco para os personagens empenhados na instalação.
O ‘Gabinete of Curiosities’ (Gabinete da Curiosidades) ou “Wunderkammer’ iniciou-se no século quinze, exibindo coleções dos tipos mais variados. As primeiras gravuras às quais temos acesso representam vastas salas inteiramente repletas de objetos de interesse artístico e científico. Tratava-se de construir um acervo que reunisse todo um mundo de fragmentos. O interesse podia ser de origem científica, estética, educacional ou mesmo moral, pois o saber melhoraria a condição humana .
Foram essas as coleções que originariam os museus para acesso publico no principio do século dezenove. Inicialmente, as categorias criadas para melhor apresentação dos objetos e educação eram muitos rudimentares. Mais tarde, os museus foram aperfeiçoando a matéria, as classificações e a particularidades no ambiente domestico eram bem vistas e forneciam um ponto de discussão para as visitas que apresentavam. Nesses meios, as classificações continuaram por exprimir-se de maneira excêntrica. Nao era o exercício da razão que importava acima de tudo, mas a sagração de categorias visuais e morais. A coleção de onjetos contidos numa vitrine podia ser classificada por meio da morfologia. Ou seja, seria permissível encontrarem-se na mesma categoria de objetos sem relação alguma além de que se referia a textura.
No seu livro The Order of the Thinks, o filosofo Michel Foucault[5] inicia o seu discurso sobre a classificação, aproveita-se de um texto do escritor Jorge Luis Borges. Borges dividia classificação do reino animal da maneira seguinte: os animais que pertencem ao rei, aqueles pintados a pincel fino, os que quebraram o jarro de água e, finalmente, os animais que, vistos de muito longe, parecem formigas.
A classificação serve como instrumento da memória. No exemplo citado por Foucault, a referência é feita a um sistema de recordação não só excêntrico, mas também altamente poético. Dessa maneira, Foucault lembra-nos que a memória não atua somente no nível intelectual ou prático, mas igualmente num sentido irracional que compromete e questiona toda a atividade de classificação. Qualquer categorização é iniciada pela memória. É nossa maneira de raciocinar e traduzir a experiência de toda uma história. Segundo Bergson[6], a nossa memória do presente é muita curta e leva-nos a esquecer os acontecimentos recentes com a maior facilidade, embora, paradoxalmente, possamos lembrar-nos de certas experiências e objetos durante uma vida inteira, mesmo se essas memórias não forem propriamente nossas, o que se torna o caso com a fotografia.
Na instalação dos Irmãos Guimarães, a foto atoa como ‘aide-mémoire’, especialmente depois do falecimento de alguém. A imagem geralmente é acessível somente para um pequeno círculo de pessoas, além desse alcance, pouco significa. Christian Boltanski é um artista plástico francês que trabalha com o conceito d a identidade enfrentando as questão do que nos distingue uns dos outros. Boltanski trabalha com a ideia da instabilidade dessa mesma identidade. O seu trabalho com título 100 Suíços Mortos, dos anos oitenta, apresenta uma instalação de cem fotografias contidas em caixas de metal idênticas e sobrepostas umas às outras. Não existe outra referência que nos conte as várias histórias dos personagens, quem são, ou como faleceram. A única categoria que nós é acessível refere-se ao título, ou seja, julgamos saber que se trata verdadeiramente de fotos de pessoas falecidas de nacionalidade suíça, o que, na realidade, nada nos revela sobre a identidade dos rostos na fotografias.
O artista russo Ilya Kabakov abrange o conceito da memória do povo soviético por meio da instalação. Suas obras são acompanhadas por textos do artista que, sob a forma de pequenos contos, descrevem as origens e circunstâncias das instalações. A obra com o título O Homem que Nunca Jogava Nada Fora apresentava um espaço repleto de objetos, todos eles colecionados durante uma vida inteira. Esta coleção que marcava a passagem do tempo acabaria por submergir o próprio colecionador. Finalmente, o personagem, afogado pelas vagas de objetos, transformar-se-ia num elemento passivo da exposição.
Enfim, o tema introduzido pelo trabalho Felizes para Sempre restabelece o principio da memória coletiva por vias da tradução de uma linguagem pessoal que se encarrega de interpretar todas as nossas histórias. Neste Milênio, os Irmãos Guimarães ocupam-se, à sua maneira, de construir um monumento digno do significado da memória infinita.
Texto publicado no catálogo: GUIMARÃES, Adriano; GUIMARÃES, Fernando (org.). Felizes Para Sempre. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001.
[1] Frances Yates, The Art of Memory (London: Pimlico), 1992, p. 135.
[2] Ibid., p. 17.
[3] Wolfang Storch (Ed.), Das Szenische Auge: Bildende Kunst und Theather (Berlim: IFA), 1996, p. 7.
[4] Michael Fried, Art and Objecthood, Artforum 5, nº 10, 1967.
[5] Michel Foucaut, The Order of Thing (London: Routledge), 1995.
[6] Henri Bergson, Matter and Memory (New York: Zone Books), 1991.