Por Cláudio Telles
A sobra de arte busca conter em si o tempo. Desde as primeiras manifestações artísticas, as pinturas encrustadas nas paredes das cavernas pelos homens pré-históricos, o componente da apreensão do tempo através da reprodução da ação está demarcado como elemento de criação. Aos olhos do homem moderno a pintura rupestre se revela quase como histórias em quadrinhos, a dialética tempo e ação. Assim podem ser resumidas várias manifestações ao longo da história da arte, sobretudo o teatro, a literatura, mais recentemente o cinema, as próprias histórias em quadrinho e, no campo específico das artes plásticas, as performances.
A obra e arte busca conter em si o espaço. Na tridimensionalidade proposta pela escultura e pela arquitetura clássica grega temos como elemento preponderante as relações do homem com o domínio estético sobre o espaço. É a luta para conter, superfície planar, o espaço que leva o artista na Renascença a conceber a perspectiva e com sua aplicação possuir o poder de representar no quadro a natureza. A percepção da totalidade espacial é um desafio aos sentidos humanos e dado como referencial para a arte. É esse o desafio que levou os artistas plásticos contemporâneos a desenvolver, e colocar em igualdade com as outras manifestações, a categoria instalação.
A nível plástico é uma justaposição de performance e instalação o que nos propõe os irmãos Adriano e Fernando Guimarães em sua encenação da tragédia shakespeariana Macbeth. É com os elementos dessas duas manifestações contemporâneas que eles buscam trabalham para trazer as nós as emoções possíveis existentes no texto do autor. Os atores, as falas e a música estão ali para nos revelar o tempo. O cenário, a iluminação e de novo a música, para nos revelar o espaço.
Ao atravessar a porta do Nepomuceno para assistir a peça, é imediata a percepção de ser estar enfrentando uma nova situação. O público é tirado de seu papel tradicional de apenas se dirigir aos seus lugares na platéia e se depara com a diferente realidade de estar ele próprio penetrando num espaço cênico, através da música, da iluminação em penumbra e da existência lateral esquerda do corredor de pequenos cenários de folhas secas que já permitem sensações. O espetáculo se inicia pelo crescendo da luz no palco através de um contínuo ato dos artistas de ascender velas, que as dezenas são parte do cenário, enquanto a luz da platéia diminui paralelamente. Desta sutil maneira, o campo da ação que estava com os expectadores que entravam passam para a atuação dos atores.
A aparição da luz no cenário corresponde à descoberta de que os personagens estão literalmente presos dentro de uma caixa – mais uma vez a questão do espaço. Nas laterais e no seu fundo esta caixa é feita chapas de aço oxidado – mais uma vez a questão do tempo. Na frente ela é feita de uma fina malha que perturba os sentidos em múltiplos aspectos. A percepção da luz pelo expectador se dá através desta malha e visualmente remete à retícula gráfica. É essa leve película que tisicamente nos separa da ação. Ela tem o poder de ressaltar e amortecer, é mais um elemento que causa estranheza e propõe questões.
O ferro das chapas sem completa no elemento cênico, cadeiras e mesas também de ferro, e nos ramos de folhas secas presas no canto e depois espalhados no espaço magistral de Lady Macbeth. Esses elementos nos levam ao lugar de ação que é a Escócia da Idade Média e, pelo seu desenho e pela utilização do material, levam sobretudo ao lugar de encenação que é um palco do final do século XX.
As velas acesas são outro elemento recheado de significados. Elas estão ali com função de participar não somente como fonte de luz, mas como referencial físico do correr do tempo. Estão ali para fazer sentir o desgastar das emoções que possuem aqueles desesperados personagens que não se consegue entender bem. Essencialmente o que se é possível perceber é que tudo ali está para fornecer múltiplos sentidos ao sincopado dos excertos escolhidos pelos encenadores. Propositalmente as referências para o expectador deixam de percorrer um caminho linear e naturalista, passando o foco principal a ser a revelação das emoções que o texto possui. O espetáculo está a serviço da ação, mas se redimensiona servindo à arte no sentido de obrigar a reflexão sobre a abrangência do fazer artístico.
Publicado no Jornal de Brasília, Caderno 2, 25 de agosto de 1990.