Por Agnaldo Farias
As coisas tem vida,
É o que eu sempre digo,
As coisas tem vida própria
Samuel Beckett em Dias Felizes
Para impedir que nos dissolvêssemos na vastidão da terra, inventamos a casa e quedamo-nos ilhados entre paredes. Para impedir que a solidão nos petrificasse de vez, inventamos – além do amor – os objetos. Para Beckett, como se sabe, o amor faltou. E, segundo Adriano e Fernando Guimarães, sobramos apenas nós e alguns poucos objetos.
Rodeamo-nos de objetos como forma de compartilhar nossa minguada existência. Notem como, além de extensões de nossos membros e sentidos, os objetos encarnam, em versão esquemática, é certo, nossos gestos mais ardilosos para realizá-los com formidável eficácia. Picamos, cortamos, torcemos, aspiramos..., infinitas são as atividades que os nossos tomados de empréstimo, amputados e amplificados realizam por meio dos objetos. E, para o nosso conforto e tranquilidade psíquica, fazemos esses objetos em escala adequada, ergométrica; para garantir-lhes a docilidade de um animal doméstico, executamo-los em materiais sedutores, revestidos com cores agradáveis, em superfícies que se desdobram do opaco e fosco ao diáfano, translúcido, transparente; em formas ancestralmente conhecidas, porque, afinal, as necessidades são quase as mesmas de sempre como essencialmente iguais são as maneiras de atendê-las por meio de vasos, cadeiras, mesas, bacias, arcas, armários. Copos – Lembra? – são as mãos em concha; garfos, os dedos em garra; cadeiras, a verticalidade do corpo entrecortada, o chão reposto à meia altura, ensejando o repouso e uma postura atenta.
Pois não é que esses mesmo objetos, isolados ou em conjuntura, podem e efetivamente traem. Pensemos nas facas pontiagudas que, vez por outra, se nos excapam para se projetarem verticalmente e diagonalmente ameaçando nossos pés, ou ainda, insidiosas, fendem nossa carne enquanto descascamos uma laranja. Como não rememorar o pequeno mas ainda assim espanto, o quase recuo de horror, o instante suspendido em que, anunciado pela dorzinha lancinante, o sangue transborda e escorre pela derme branca da fruta. Claro está que as facas trazem manifestamente essa dualidade de que todos somos feitos, essa compulsão bifurcada entre criar e destruir. E mesmo os tão fraternos liquidificadores, fogões, aspiradores de pó e ferros elétricos fascinam pelo potencial poder de macerar, triturar, pulverizar, sorver e queimar.
Quando os olhamos sob esse prisma, os objetos são seres assustadores pelo que contêm de nós e porque esse mesmo conteúdo se mantém a distância, como se fosse diferente. E qualquer um de nós, ao menos uma vez, foi assustado por um medo pânico, um estranhamento inexorável, quando, no meio da madrugada, entrou na cozinha, pés nus sobre o chão pálido e frio de ladrilhos, e flagrou a meditação compassada do relógio, o ronco baixo e monótono da geladeira, os estalos inexplicáveis e aleatórios que as junções entre madeira, plástico e metal, porque não se aturam, porque não se combinam, efetuam entre si. Estamos nos objetos e os objetos em nós. Olhamo-nos com sentimentos variáveis, mas o fato é que eles são extraordinários, Em seu Elogio à Mão, Focillon repassa a relação amorável que a mão do artesão estabelece com os instrumentos; os anos de convívio continuado facultam um amoldamento mútuo onde o calo produzido na mão era, passado um lapso de tempo, retribuído sob forma de escavações sutis na superfície do instrumento, um torneado obtido por contato intenso. Os objetos são nossas testemunhas assim como as roupas comuns dependuradas são nossos singelos estandartes. As mesas que protagonizaram nossas cozinhas ou salas de jantar foram, mais que o chão trazido para perto do peito, os planos de pasto, as arenas de troca de conversas e rancores, as áreas de estudo, ensimesmamento, desespero..., capazes de aparar nosso rosto quando, esgotados, o baixávamos apoiando-o sobre os braços. Por isso, não simples mesas. Por isso, um simples objeto, ainda mais se constantemente utilizado, nunca será um simples objeto. Basta estarmos diante dele para que alguma coisa dentro de nós se destrave, madeleine improvável a puxar pela memória.
Dias Felizes é o nome de uma peça de Samuel Beckett e Felizes para sempre o título da obra – em que categoria encaixá-la? – realizada por Adriano e Fernando Guimarães, composta pela encenação simultânea de Dias Felizes, Ir e vir e Jogo. Não Bastasse o alinhavo entre as três peças, os diretores/artistas elaboraram instalações onde tudo acontece. Abrigos, constituída por armários de feições hospitalares: dois metros de altura, com estrutura de metal e placas de vidro, com textos e imagens fotográficas aplicadas sobre elas. Chapéus compõem-se de armários pequenos e cúbicos, sempre com a aparência anódina de equipamento hospitalar, isto é, também executados em estrutura de metal e vidro, e, dentro dos quais, o espectador deverá encaixar sua cabeça e virá-la para o alto de modo a ver imagens projetadas pelo monitor de vídeo. Por último, Abrigos 2, conjunto de armários que servem de câmeras/envoltórios para os atores/personagens das três peças.
O recurso a um só tempo ao vídeo, fotografia, performance, instalação e teatro dá o que pensar. Mérito de um projeto de arcabouço grandioso que não se define como uma cenografia e que faz uso de suportes variados para enredar o espectador, fazê-lo espacapar de sua contumaz passividade. E não deixa de ser surpreendente que, a esta altura em que até mesmo os campos de conhecimento demarcados pela ciência vão se interpenetrando, haja quem persista combrando de Felizes para sempre que ela se comporte como o teatro habitual, provavelmente são os mesmos que, em relação às artes visuais, reivindicam que elas devam se valer exclusivamente de pinturas, desenhos, esculturas e gravuras. Nem mesmo a ciência, dizia, essa modalidade tão conspícua do saber que, ao contrário do que habitualmente acreditamos, opera em nome da dúvida e não da certeza, acredita mais na antiga especificidade de seus objetos e respectivos métodos. As fronteiras vem se esgarçando de tal modo que já não sabemos ao certo se o estudo da série DNA, para ficar num exemplo que hoje faz praça, concerne à biologia, à física ou à química, ou a todos eles igualmente.
Fiel a epígrafe do texto, segundo o qual as coisas tem vida, categoria em que os objetos se encaixam, em Felizes para sempre, eles assumem um papel preponderante. A visada particular dos irmãos Guimarães sobre Beckett cuida em demonstrar o alcance do texto desse autor. Para tanto, o espetáculo vai-se desenrolando na razão do fluxo dos espectadores pelos objetos, entre eles, vivenciando-os, experimentando-os. Os irmãos extraíram da afirmação de Beckett a ideia subjacente de que estamos nos objetos e os objetos em nós e terminaram por traduzir essas proposições num espetáculo voltado a propor ao público a confirmação da sua veracidade. Se é verdade que os objetos tem vida própria, também é verdade que nós, os pobres deuses que os engendraram, somos, em grande parte, seres inanimados.
Vejamos isso melhor. Com sua existência, uma trivial maçaneta de uma porta alude a um gesto mecânico, encapsulado como que num curto circuito. De nós a maçaneta demanda somente a mão e dela, por sua vez, um gesto limitado e preciso. Similarmente, poder-se-ia dizer que a cadeira, em princípio, faz um apelo às nossas nádegas; o lápis, às pontas dos dedos e aos lábios. Cada objeto, enfim, colhe em nós um mesmo monótono ritual, atitude que desempenhamos como que anestesiados, com o mesmo automatismo e previsibilidade dos reflexos corporais.
Entre as lições de Beckett aprendidas por Adriano e Fernando, esplende a convicção de que os objetos nos recortam e recortamo-nos ao usá-los. Por isso, em suas paeças, tudo comparece coagulado, o tempo, o espaço, o corpo. Enregeladas, decepadas, as pessoas, à maneira dos objetos, frequentemente instaladas dentro deles – cadeiras, cesto de lixo, armários -, ficam imobilizadas ou quase. Paralíticas em meio às coisas, em meio às imagens (entre as quais suas próprias) e restos de linguagem. Há casos, como em Jogo, que das personagens só restam as cabeças. O homem como objeto falante.
Essa argumentação explica a profusão de armários em Felizes para sempre. Com a escala do corpo, os onze armários que constituem a instalação Abrigos, de resto como qualquer armário, funcionam como uma espécie de caixa vertical, a ser utilizado em vida. De fato, mesmo o mais ordinário dos armários presta-se a função de acomodar nossas coisas, roupas e relicários, peles e despojos. Diante dos armários que constituem a instalação Abrigos, por efeito da reflexividade do material, vemo-nos vendo. Dentro de cada um deles, estão colocadas imagens variadas, de crianças aos rostos de pessoas idosas, de fotos de uma cerimônia de casamento à máscara mortuária acompanhada de mensagens de condolências enviadas à família. O périplo dos espectadores dá-se em meio a esses aquários de imagens e culmina em um, onde o espectador é convidado a enfiar a própria cabeça.
Em linhas gerais, Chapéus tem a mesma aparência do conjunto anterior, embora componha-se de armários menores, em que o espectador encaixa a sua cabeça. Abrigado nessa câmara de vidro, lê os textos aplicados sobre as paredes do cubo, vê-se duplicado lateralmente e, graças à luz que incide diretamente sobre si, cada um converte-se numa clareira no meio da noite espessa, ao mesmo tempo em que, aos olhos daqueles que estão do lado de fora, ficam como que aprisionados numa vitrine. Pelo título e pela forma, Chapéus remete diretamente a um dos objetos de genealogia mais nobre, cuja poderosa simbologia atravessa a maioria das culturas, e de que Beckett lança mão com muita frequência. Casca protetora, o chapéu é, a um só tempo, uma versão do universo que se amolda a nossa cabeça e a súmula de todo o conhecimento adquirido, a memória individual, a chama da identidade.
Passadas as sugestões de homologia entre o corpo e a memória do espectador e o armário/receptáculo, o espectador atinge a terceira e última série de armários nomeada Abrigos 2. Aqui, em lugar do corpo do espectador, emerge o corpo dos atores, dando início às performances dramáticas. Dependendo de cada armário, o espectador espreita, adivinhando fragmentos de um corpo ou contempla corpos inteiros, comprimidos em seus interiores, frágeis casulos de vidro, ponto de partida dessa dramaturgia a pensar o absurdo da nossa condição.
Texto publicado no catálogo: GUIMARÃES, Adriano; GUIMARÃES, Fernando (org.). Felizes Para Sempre. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001.