Por Jean-Claude Bernardet
RESTA POUCO A DIZER, excelente espetáculo (Teatro Anchieta) de Fernando e Adriano Guimarães, alterna textos curtos de Samuel Beckett com performances. Na primeira, dois atores ficam imersos em dois tanques de água já na entrada do teatro; nas seguintes apenas a cabeça é imersa. O que poderia parecer uma extravagância vai revelando no decorrer do espetáculo uma rigorosa lógica interna. Essa lógica é a da respiração. E da antirrespiração, da apneia, quando a cabeça está imersa. Assim que a cabeça sai da água, a boca toca um texto em disparada mecânica. O primeiro texto é “Respirar é um ato obrigatório”, que, salvo engano, foi utilizado pelos mesmos Guimarães em outra performance aquática no SESC Paulista há alguns anos.
O que isso tem a ver com Beckett? Fica claro na terceira peça, JOGO (1962), em que três personagens metralham o diálogo, seguindo didascália do dramaturgo projetada numa tela durante o espetáculo. Essa fala metralhada exige uma forte inspiração que permita articular a maior quantidade possível de texto até que, esgotado o fôlego, uma breve pausa prepara nova inspiração (afinal ninguém é de ferro). Assim se estabelece uma relação entre respiração, emissão de texto e imersão na água. Algumas dicas guiam o espectador: a peça que precede JOGO é ATO SEM PALAVRA, pode ser tomada como contraponto a uma peça de fala disparada (por outro lado ATO é um Escher ou um Moebius dramático; além disso, alguns textos do espetáculo são ditos em forma de anel). Outro contraponto: as performances apresentadas entre as peças de Beckett consistem em um ou mais atores ficar em pé diante de um balde d’água e se curvar até a cabeça ficar imersa, ora JOGO apresenta personagens enfiados dentro de caixas das quais emergem apenas as cabeças. Outra conexão entre JOGO e a primeira performance: uma campainha, tocada por um mestre de cerimônia, indica o momento exato em que os atores devem entrar na água, onde ficarão até não agüentar mais, emergirão e imediatamente dispararão o texto até novo toque da campainha. Essa estrutura evoca a escolhida por Beckett em JOGO em que a campainha é substituída por um canhão de luz que só ilumina um ator e só fala o ator iluminado. O canhão de luz dispara o texto como a campainha o interrompia.
O eixo conceitual de RESTA POUCO A DIZER (muito pouco mesmo) é a respiração, ato obrigatório que o espetáculo transgride (até certo ponto, atores e atrizes permanecem vivos até o fim do espetáculo).
Gostaria de acrescentar uma observação sobre o texto metralhado que, ao limite, é incompreensível. A preocupação básica dos atores é a precisão de articulação das sílabas, uma mais do que breve pausa entre as palavras e a quantidade de texto que conseguem emitir a cada inspiração. Assim o texto, mesmo a história triangular de JOGO, deixa de ser um relato pessoal ou uma comunicação entre pessoas, deixa de ser uma área de expressão da subjetividade, de ser modulado pelas entonações e o tempo das emoções. Volto à minha obsessão: JOGO DE CENA. A partir do momento em que o texto deixa o corpo que vivenciou a experiência relatada e que foi o primeiro narrador, ele ganha autonomia. Sua autonomia textual se presta a uma interpretação realista emocionada como no filme de Coutinho, mas pode igualmente e sem nenhum problema se tornar um texto chispado mecanicamente, área de trabalho da respiração (a qual não estará mais a serviço das emoções) ou de qualquer outro parâmetro que se queira.
É um espetáculo preciso, dinâmico, que nunca perde o tônus.
Texto publicado no blog do autor (http://jcbernardet.blog.uol.com.br), 14 de janeiro de 2011.