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Por Marília Panitz

 

Tente novamente,

falhe novamente,
falhe melhor

Samuel Beckett em Worstward Ho

 

Um jogo de xadrez em um café da rive gauche. Marchel Duchamp e Samuel Beckett. Essa é uma história emblemática (embora, às vezes, contestada) do que operava ali, na Paris dos anos 20 e 30. Como estratégia, a total reversão das funções da linguagem. Contra a eloquência do discurso estético, propõe-se o silêncio, propõe-se a falta... Ou falta. O vislumbre do que não pode ser dito.  Não visto, mas entrevisto. O reconhecimento do que já tinha sido apontado por Freud na virada do século: que o sujeito não responde à consciência.

Duchamp abandonava a ideia de produção artística como manufatura. Em seu lugar, propunha deslocamentos. Existência por nomeação, arte como conceito – “São os olhares que fazem o quadro”[1]. No lugar do prazer sensível, o objeto banal destituído de sua funcionalidade e oferecido ao olhar como parte de um enigma para o qual nunca se pode ter a certeza de haver uma resposta. Ou seja, o produto-obra não se apresenta como culminância-fim de um processo de criação  do artista, mas como lugar onde as relações entre criador e fruidor se dão, mediadas pelo contexto em que o encontro se dá, constituindo (de maneira dinâmica) a versão-obra... Olhos, obras, palavras... Sempre a mesma obra. Os mínimos mesmos elementos.

Beckett, depois de ler, transcrever, e traduzir para James Joyce – além de trocar silêncios com o amigo -, passou a escrever em francês, como medida econômica de fuga das possibilidades alusivas que a língua tinha para ele. Buscava o mínimo. Buscava a estrutura no lugar da trama. Escavava as palavras até descarná-las. Estabelecia a repetição do mesmo como método e os silêncios como articulação de sentido. Concisão de texto que, todavia, se desdobrava para os ouvintes. Fragmentação que provoca o desejo da construção de versões possíveis (ou impossíveis) - são os ouvintes que constituem o texto.

O que esses homens estavam fazendo não era teatro, literatura, escultura, pintura... Estavam operando uma descodificação/recodificação de linguagem: texto imagético e imagem conceitual... Apagamento de fronteiras. Trânsito entre imagem e texto, realidade e ficção, memória e absoluta atualização, desejo e perda.

Em seu diálogo com Beckett, Adriano e Fernando Guimarães trazem ecos daqueles jogos de xadrez entre dois mestres. Seu trabalho inscreve-se dentro de uma corrente de artistas que se apropriam de seu texto e experimentam a possibilidade dele sustentar como proposta eminentemente imagética e perceptiva.  E essa parceria tem precedentes. Se a proximidade entre Beckett e Giacometti é bastante conhecida, são os artistas inscritos em uma tradição pós-moderna que receberão essa influência de forma radical. Um Jasper Johns pós-minimalista compôs uma série de imagens em paralelo a Fizzles, do dramaturgo. A exposição Beckett/Nauman, realizada este ano, na Kunsthalle, em Viena, examinava, como um inventário, as conexões entre sua obra e a de Bruce Nauman, cuja questão recorrente se refere à repetição e ao esvaziamento das ações. Nauman, desde os anos 60, faz referências diretas a Beckett. Em 97, na documenta X, a curadora Catherine David dedicou um dos capítulos do Livro Poetics/Politic – e uma parte da mostra – Beckett, associando sua obra à de Joseph Beuys, Eva Hesse e Francis Bacon. No livro, em um artigo sobre Fim de Partida, Theodor Adorno resume o que pode ser a essência do legado de Beckett: “Uma realidade irreconciliável não tolera irreconcialiável não tolera reconciliação com o objeto de arte”[2].

Felizes para Sempre não é, rigorosamente, uma montagem dos textos Dias Felizes, Ir e Vir e Jogo. Pode-se pensar nele como uma conversa com Beckett em torno da metáfora do objeto armário. A encenação, as performances, as instalações – Abrigos, Chapéus, Paisagem, Vozes e Olho – giram em torno de armários (estes armários hospitalares, com paredes e portas de vidro). Um percurso entre eles coloca, veementemente, a incômoda ambigüidade que o objeto carrega... Entre vitrine e esconderijo, entre a condição de objeto exposto e a de suporte para a exposição do fruidor aos olhares dos outros, ele circunscreve a visão à sua moldura. Restringe o olhar à frontalidade (e essa não é uma lição apreendida com Beckett?).

Mas o que se vê, então? Fragmentos de memória, oferecendo-se como possibilidade de composição. Mas uma memória, já sem dono - embora os objetos ali tenham história. Afinal, trata-se de deslocamentos. Esta sedução voyeurística, que nos toma ao vislumbrarmos a possibilidade de devassar o abrigo com o olhar, resulta em uma armadilha (e essa não é uma lição apreendida com Duchamp?). Pois, o que ocorre é subversão de sentido: as fotos são emblemas, em tudo se parecem com as de algum parente de qualquer um; outro armário engole o fruidor, e um monitor de vídeo, em seu interior, oferece o espetáculo do que já foi visto fora dele; outro só permite de descoberto por pequenos orifícios feitos no veludo vermelho que o forra e, em alguns momentos, vai “vestir” o corpo nu de um personagem que o habitará... Assim como as camisas guardadas por outro armário, cujas mangas têm a extensão  que permite chegar a qualquer objeto, mas impede de tocá-lo.

Os armários-chapéus são para ser vestidos pelo fruidor. São cinco que se repetem em duplos “cegos”. Em dois deles, a imagem daquele que o veste se mistura a de um retrato aplicado em película translúcida sobre o vidro. Veste-se o chapéu, vestem-se as cicratrizes alheias. Outros dois tem texto para ser lido por pares de espectadores. O outro possui espelhos que nos refletem claustrofobicamente. Seus duplos-cegos não se deixam penetrar. Permanecem promessas. 

Paisagem repete exaustivamente, com variações de tonalidade – do braço absoluto ao preto total e de volta ao branco –, a mesma imagem de um personagem vestido com o casaco-de-mangas-longas, dentro de um armário. O mesmo que não é o mesmo sob a ação do tempo, do espaço, da luz, do olhar que devolve.

Como Vozes, os armários hospedam a ação dos atores e sua ausência, referida por documentação videográfica. Vemos Flo, Ru e Vi, saídas de Ir e Vir, vestidas com luvas de crochê, encrustadas com pérolas e agulhas, moverem-se dos armários às cadeiras e aos armários, deixando o rastro das impossibilidade em suas falas e gestos. A Winnie, de Dias Felizes, não está  enterrada, mas sim encaixotada em um armário, somente cabeça, vestida por um chapéu de olhos. Puro olhar e fala esvaziada. Por companhia (?), o marido de Willie, que mora em outro armário. As três cabeças de Jogo esperam a luz que lhes dá vida e só se retiram do armário/caixão para recuperar seus corpos, ao final do diálogo.

Olho especula estes sombreamentos entre texto, ação e silêncio, entre espectador, performer e objeto. Quem observa, quem expõe/atua, de que linguagens esses co-participantes lançam  mão?

E é neste objeto-emblema, espécie de pontuação de um discurso-sem-palavras, que se vislumbra um código que torna possível um encadeamento desses fragmentos e o estabelecimento de uma versão. A repetição do armário determina a leitura. Não seus possíveis conteúdos, mas sua função de receptáculo. Vazio em torno dos possíveis sentidos... À medida de Duchamp... À maneira de Beckett.

 

Texto publicado no catálogo: GUIMARÃES, Adriano; GUIMARÃES, Fernando (org.). Felizes Para Sempre. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001. 

 


 

[1] ADORNO, Theodor, Trying to Understand Endgame, In documenta und Museum Fridericianm Veranstaltung – GmbH, Poetics/ Politics (versão inglesa), Cantz Verlag, 1997, p. 238

[2] DUCHAMP, Marcel, citado por LEENHARDT, Jacques. Duchamp. Crítica da Razão Visual. In: Novaes, Adauto (org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 347.

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